quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Sex and cigarettes

Sorvia o fumo até se lhe inundarem os pulmões, deixando escapar o resto pelos lábios entreabertos. A luz apagada, a cadeira posta em frente à varanda aberta para a avenida, àquela hora, sem movimento, as pernas estiradas. Os olhos esquecidos da janela da frente, com os estores corridos, à qual dedicara tanta atenção nos últimos tempos. Só o fumo lhe merecia atenção. Uma boa metáfora, o cigarro, pensava ele. Fuma-se, sofregamente, até queimar por completo papel e tabaco e, no fim, não fica senão um gosto amargo na boca. Esmaga-se a beata, no cinzeiro ou onde calhar, e não se pensa mais no cigarro. O fumo esvai-se, não tem peso. Tal como a vizinha da frente.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Ausência

Toda a família está reunida. Falam pouco, mas também, nunca nenhum Alves saiu falador. A Alzira traz um tabuleiro com umas chávenas de chá e umas bolachas de água e sal, para o caso de alguém querer, mas só o Quinzinho, sempre guloso, lhes deita a mão.
A minha mãe folheia o álbum de fotografias, relembrando tempos idos. O meu cunhado, apercebe-se de que o Quinzinho traz, vestido, um colete meu: “Vai já tirar isso!”, ralha. O Beto era militar e tudo o que lhe saía pela boca fora, era uma ordem que não admitia desobediência. O meu filho corre até ao quarto e aí, insubordina-se em segredo, mantendo o colete vestido.
A Tina acaricia a barriga, grande de oito meses. A princípio, todos temeram que o bebé nascesse antes de tempo, mas a criança lá se aguentou onde estava.
A Alzira, agora, está nervosa; irrequietam-se-lhe as mãos quando não estão ocupadas. Gostava de poder dizer-lhe umas piadas, daquelas que sempre lhe arrancam um risinho quando está triste, mas não creio que consiga ouvir-me com toda a terra que me deitaram em cima, as flores e o caixão de carvalho maciço.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

«Vegetable Dinner», de Peter Blume

Não, o olhar dela não queria saber dos dedos que descascavam batatas: tinha-se deslocado, irremediavelmente, de toda e qualquer parte do corpo dele. Não lhe interessavam os seus movimentos, as suas idas e vindas, as suas formas, as suas sensibilidades. De resto, o alheamento do olhar dela comungava do desinteresse do resto dos seus orgãos perante aquela massa que ocupava pedaços do seu espaço doméstico, ora na sala, em frente ao fogo moribundo, ora na cozinha, no lugar da mesa oposto ao seu, ora na casa de banho, tapando os azulejos desmaiados, ora na cama, onde se avolumava para além do limite do suportável.
O seu cigarro ocupava-lhe a boca, as mãos, o pensamento, esgotava-lhe os desejos. Sorvia o objecto do seu interesse, sentia-o descer pelo interior do seu corpo, habitando-o plena e pacificamente. Sim, concentrava a sua vontade e atenção no pequeno cilindro de papel e isso bastava-lhe.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Missing

Foi nos primeiros dias de Setembro. Marina levantou-se da cama, à hora do costume e foi até à cozinha preparar o pequeno-almoço. Ligou o rádio, mas o aparelho não emitiu qualquer som. Pensou se seria das pilhas, mas lembrou-se que o rádio funcionava por ligação à corrente. Perguntou-se se teria falhado a luz, mas bastou-lhe accionar o interruptor da cozinha para verificar que assim não era. Talvez o rádio fosse chinês, conjecturou, incapaz de se lembrar de onde o tinha comprado. Abriu então o frigorífico, mas estava vazio. O mesmo se passava com os móveis da cozinha, onde guardava os víveres.
Dirigiu-se ao quarto para se vestir, tinha de ir trabalhar. Tomaria qualquer coisa na rua e depois do trabalho iria às compras. Ao abrir o armário, contudo, o mesmo vazio que nos móveis da cozinha. Pegou nas roupas que tinha vestido no dia anterior e que estavam sobre a cadeira do quarto, vestiu-as, confusa, e saiu.
Já na rua, apercebeu-se de que tinha deixado a carteira em casa. Sem as chaves do carro, o qual, aliás, também não conseguia encontrar, nem dinheiro para transportes, não poderia ir trabalhar. Tocou à campainha do vizinho, para que lhe abrisse a porta do prédio e a ajudasse a abrir a porta de casa, mas aquele não atendeu, como, de resto, não atenderam todos os outros.
Sentou-se no degrau da entrada, sem saber o que fazer a seguir. Pouco depois, chegou o vizinho de passear o cão. Ela cumprimentou-o, obtendo em resposta o silêncio. Sem perceber o que se estava a passar, teve, ainda assim, suficiente presença de espírito para aproveitar a porta aberta e entrar no prédio.
Subiu as escadas, atrás do vizinho. Ao chegar ao andar em que ambos moravam, o seu espanto não podia ser maior: a porta do seu apartamento desaparecera. Mais! O seu apartamento desaparecera. Disse qualquer coisa ao vizinho que, parado em frente ao apartamento dela, olhava, atónito, o vazio. Mais uma vez, ele não deu sequer mostras de a ter ouvido. Apercebeu-se então de que o cão dele estava exactamente no mesmo sítio que ela. Aliás, dizer “no mesmo sítio”, nem sequer era correcto – o animal estava NO sítio dela, tal como o vizinho, ao virar costas para voltar a descer as escadas. Atravessaram-na, ambos, sem que ninguém sentisse nada.
Foi nos primeiros dias de Setembro que leu no jornal local acerca do misterioso desaparecimento de um apartamento e da sua ocupante. Lembrava-se, porque tinha sido uns dias antes que Nuno partira.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Bchhh, Bchhh

(Outra vez! Outra vez as toalhas espalhadas pelo chão! Mas que raio de mania! Já estou farta disto. Qualquer dia...)
Bchhh, bchhh
(... e a cama cheia de pêlos, por todo o lado. Não há quem aguente.)
Bchhh, bchhh
(E claro que só come aquilo que quer. Comer alguma coisa diferente, nem pensar!)
Bchhh
(E agora, no verão, é um calor. "Deslarga!", digo-lhe eu, mas nada. Puff!)
B...
(Estava tão bem sozinha...)
Bch...
(... não ter de limpar-lhe o toilette, com aquele cheiro...)
B...
(Ah, não ter que dar sempre um bocado de tudo o que como...)
Bchhh!
(... não me preocupar se demoro mais tempo na rua...)
Bchhh, bchhh, bchh!!
(... poder até ficar uns dias sem vir a casa sem sentir remorsos!)
BCHHH!
(AH! Que paz que seria!)
Bchhh, bchhh, bchhh!
............................................
BCHHH, BCHHH, BCHHH!
............................................

Pronto, mais outro gato que se foi. Que solidão que é...

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Divagações



Eu aqui a suar, apesar do ar condicionado, à espera dos clientes que, não sei porquê, não vêm, a refazer as contas do fim do mês (se deixar de pôr gasolina no carro e não me importar com os calos e as entorses... se perder o hábito de beber água sem sabor, resignando-me à que traz incorporada o sabor dos canos com ferrugem vetusta... se viver às escuras – com o tempo já quase não farei nódoas negras por ir contra os móveis... se adoptar um estilo que pomposa e dissimuladamente apelidarei de “vintage”, para disfarçar o facto de que não compro roupa há mais de um ano... se me distrair com qualquer coisa, todos os dias, por volta da hora das refeições, tornando-as em algo dispensável... se me candidatar ao guiness como a mulher que há mais tempo não corta os cabelos... ?). Mas o saldo não abre mão da sua cor vermelha.
E o computador ligado, com uma folha tecnologicamente branca no monitor. Se fizesse uma estatística das teclas mais usadas, não tenho dúvidas, a vencedora seria a “delete”. Desconfio que por ser a mais sensata...
Quero ir ver os gatos - há um que passa todos os dias por aqui – as árvores lentamente a florir, as sombras efémeras, como as nuvens, todas as inutilidades que compõem um dia cheio.
Em vez disso, as paredes cobertas de espera, palavras que não existem verdadeiramente senão aos olhos de quem as lê. Imprimem-se mais palavras do que as necessárias.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

O merceeiro

A mina do lápis vermelho espreita a custo por entre a madeira. Antes, ele havia cravado a lâmina do canivete na fibra vegetal, morta para servir. Molha a ponta na ponta da língua. Escreve, arrastando pelo papel um fio de cuspo, uma linha de baba.
Escreve devagar, está mais habituado aos números. Primeiro a data, como se fosse preciso. Depois...
Depois o nome. Firme. A mão grossa retesando-se em redor do instrumento da escrita, subindo letra acima, descendo letra abaixo. O nome.
Antes saía-lhe melífluo pelos lábios, como compota de frutos silvestres. Agora, o bico do lápis asperizando as letras na imensidão do papel.
Geógrafo no seu mapa privado, traça a linha da fronteira entre o lado de cá e o de lá. Usa mais força do que a que é preciso. Fica a marca em todas as folhas que irão seguir-se.
Esgotado, o bico do lápis tem de ser retirado do pau a golpes de canivete. Corta-se.
Calha bem. Agora é preciso que escreva a vermelho, encabeçar territórios. Dever e Haver.
Na coluna do Dever, o nome dela. Na coluna do Haver, nada.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Olhando para trás (a partir do quadro homónimo da Paula Rego)

A culpa era dela, ela nas várias idades. Dos seios dela, que se amontoavam sobre as costelas, das ancas dela, que se arredondavam, da sua condição de "cortada ao meio".
Aquele corte... era preciso que fosse rasgado, numa empreitada. Mas que não sentisse prazer. O prazer era uma coisa obscena.
O gozar do corpo dela, isso era uma coisa justa, pois que estava ali. E ele podia tomá-lo.
Encavalitava-se na cama para pegar no cão, sem o mínimo cuidado em ocultar as coxas, o rabo por cima delas, as costas por onde seguia a sua fisicalidade. Essa desocultação tinha de ser punida, punida e aproveitada.
Ele trataria disso. Tinha tudo o que era preciso. Tinha, inclusive, a consciência a jeito para limpar-se no fim.
Seguia, sem escrúpulos, os seus desígnios coxas adentro, garganta abaixo. Ela que engolisse, ela que o engolisse. Nada mais apropriado para uma boca do que dentes de leite.
Ah, a nívea oblação sobre o altar tenro daquele corpo! A viril oferenda ao deus decrépito que com certeza venerava!
Estupor!
Estupro!

Olhando para trás, a culpa era toda dela, ela nas várias pequenas idades.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Os Pais do Mané

Augusto Manuel, homem apreciador das coisas boas da vida, que para ele eram um bom copo e um bom rabo, olhava com desgosto o seu filho mais velho, Eduardo Mané. O rapaz, desde que vira um bailado na dois, andava-lhe aos rodopios saltitantes pela casa.
Guto, como era familiarmente conhecido, para tentar inverter os estragos, arrastara o rapaz por tascas, onde vozes roufenhas cantavam fados malandros, enchendo-lhe generosamente o copo e fisgando, pelo canto do olho, a fêmea de serviço encostada à parede em frente da tasca. Por mais que enfiasse notas nos decotes das experientes mulheres da vida, por mais que procurasse variar a oferta, com novas e velhas, gordas e magras, loiras e morenas, à pergunta de “Então, então, o rapaz?”, seguia-se invariavelmente um encolher de ombros e um sorrisinho malicioso.
A coisa já começava a ser comentada no bairro, valendo ao primogénito o expressivo diminutivo de Dudu. Guto, a quem as sovas na mulher começavam a não bastar para lhe acalmar os ânimos, tomou então uma medida drástica: alistou o Dudu na marinha. Se lá não fizessem dele um homem, em mais nenhum sítio o fariam.
Usando uma das duas únicas técnicas persuasivas que conhecia, o afogar resistências em tinto (a outra reserva-a para a mulher, de físico menos desenvolvido que o dele), enfiou o rapaz num navio, numa madrugada de Dezembro, dias antes do Natal.
Durante o tempo em que o filho andou no mar, ao Guto Mané arrebitaram-se-lhe as pontas dos bigodes, entre outras coisas e o seu dinheiro, ganho a engraxar sapatos à porta do Ministério da Justiça, foi dado como bem empregue nos balcões de mármore das tascas e por entre as mamas das mulheres da rua.
A felicidade acabou-se quando o navio em que embarcara o Eduardo Mané, atracou no cais, um mês depois. O filho, tostado pelo sol, lá isso não se podia negar, regressara com mais um apodo na bagagem, o qual resumia bem a sua curta carreira na marinha: Dudu do Tutu.
Desde essa altura, os bigodes do Guto murcharam tanto que até a Eugénia, o saco de boxe com quem casara, sentiu qualquer coisa próxima da simpatia por ele. Eugénia, como tantas outras esposas, depois que o marido baixou os braços, rendido, tomou o caso entre mãos. Ligou ao irmão, de quem o rapaz herdara o nome e, pelos vistos, mais qualquer coisinha, pedindo-lhe ajuda.
O tio Eduardo, de costumes duvidosos e coração ansioso por reparar os danos que causara na família, acudiu a casa da Eugénia, num dia em que estava de folga no Cabaré. Dudu, ao ver, pela primeira vez na vida, o tio materno, simpatizou imediatamente com ele. Que modos delicados, os dele! Nada abrutalhados, como os do pai. E que cútis tão cuidada!
Não foi preciso insistir com o rapaz para que fosse viver com o tio e tentar a sua sorte como performer – termo com que o tio se designava a si mesmo, talvez para desviar a atenção das plumas e lantejoulas que usava no palco.
Assim que transpôs a porta do Cabaré onde trabalhava miss Fournier, nome artístico do tio, Dudu soube que tinha encontrado o seu lugar. O rapaz tinha boa voz, corpo delgado, como o da mãe e, no que dizia respeito a movimentar-se, mais graça do que a mais graciosa das mulheres, e não tardou a criar fama na noite da capital. Chegou mesmo, num espectáculo de variedades, a aparecer na televisão. Que mais poderia ele desejar?
Eugénia não o voltou a ver desde a vez em que passou na tv e guardou um secreto orgulho pelo filho, tão dotado para a vida artística. Quanto ao Guto Mané, o episódio com a marinha desmoralizou-o permanentemente da cintura para baixo, motivo pelo qual, depois das noitadas, já não lhe sobrava genica para as fêmeas nem para o exercício de bater na mulher. Dudu, esse, descobriu que por trás de um desajeitado homem se esconde, por vezes, uma esplêndida mulher.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Bio-facsímile


Ela era uma Bio-facsímile de terceira geração. A sua cobertura, de silicone texturizado de alta definição, tinha todas as ramificações de uma pele de ente humano; o seu sistema coordenador central era de uma complexidade assombrosa; os terminais sensitivos eram extremamente apurados; os aparelhos locomotores eram de alta performance e a sua capacidade expressiva era impressionante, para uma criação de existência simulada.
Quando ele a viu na montra do seu terminal de conexão global, soube que tinha de tê-la. Nuno Vaz era um artista e, portanto, tinha uma existência underground, sempre iludindo as Autoridades do Desempenho Economicamente Relevante, ludibriando os fiscais dos Registos de Contribuição Social, apenas tolerantes para com os contribuintes da Gama de Excepção, como os Representantes das Organizações de Gestão dos Assuntos Públicos.
Sob um designativo pessoal falso, Nuno inscreveu-se para uma transacção de compensação equitativa da Bio-facsímile por tranches, fornecendo, para o efeito, um Número de Ubicação de Rendimentos forjado por contactos da Resistência Anárquico-Subversiva.
Recebeu, através de uma Companhia de Transportes Independente - as únicas que não mantêm um registo de localização de clientes - a primeira entrega da sua aquisição: um par de olhos num invólucro resistente a culturas parasitárias.
Nuno colocou os olhos numa pequena plataforma de transporte que trazia pendurada ao pescoço. Os órgãos da Bio-facsímile, embora isolados do resto da assemblagem, cumpriam todos os requisitos para os quais haviam sido desenhados. Dispunham de um sistema de transmissão de dados para o coordenador central da biofax (diminutivo de Bio-facsímile), o qual registava todas as percepções visuais dos órgãos oculares.
Os olhos da Biofax testemunhavam todos os instantes da vida do seu detentor, desde os mais íntimos e insignificantes, até aos passíveis de severa repreensão por parte das Autoridades Democraticamente Consentidas. Embora soubesse que isso constituía um risco grave, no seu interior, Nuno estava convencido de que nada tinha a temer por parte da sua Biofax.
Passado algum tempo, Nuno recebeu a segunda entrega, desta feita um set de dedos. Dado não ser ainda possível proceder à assemblagem do conjunto da Biofax, também os dedos vinham no mesmo tipo de invólucro dos olhos e, por conseguinte, Nuno não podia ter um contacto directo com os mesmos. Estes, contudo, registavam todas as impressões tácteis a que eram expostos, enviando-as, igualmente, para o coordenador central da Biofax. Os dedos seguiam todos os movimentos de Nuno e, durante a noite, repousavam sobre o seu peito, enquanto dormia. Com intervalos de tempo seguros entre as entregas, Nuno foi recebendo as várias partes constituintes da sua Biofax: os pés, os joelhos, o pescoço, as ancas, os ombros, as orelhas, as coxas, os braços, o nariz, as pernas, o peito, a cabeça e, por fim, a boca.

No dia da última entrega, Nuno não conseguiu dormir. Passou a noite sentado no meio do chão do armazém que acumulava as funções de habitação e atelier, olhando atentamente cada uma das fracções da Biofax. A partir do momento em que finalizasse a assemblagem, tudo mudaria, e ele, simultaneamente temia e ansiava por esse instante.
Aos primeiros sinais de iluminação exterior artificialmente gerada, Nuno levantou-se e iniciou o processo de assemblagem que lhe ocupou o dia inteiro. À noite, a Biofax estava, pela primeira vez desde que tinha sido submetida aos testes performativos e, posteriormente, remetida para as prateleiras do depósito de facsímiles idênticos a ela, pronta para funcionar em pleno.
Após alguns instantes em que permaneceu imóvel frente à Biofax, contemplando-a, Nuno aproximou-se de Bia (como apelidara a Biofax), colocou a mão direita por trás do seu pescoço e puxou-a suavemente para si. Era um espécime impressionantemente bem conseguido. Nuno sentia a textura e a temperatura de Bia em cada dedo da sua mão direita. Olhou fundo nos seus olhos e nada neles traía a sua origem cibótica. Olhou o nariz, levemente inclinado – a facsímile continha algumas imperfeições, para torná-la mais verosímil – a boca… Nuno não se atreveu, ainda não.
Aproximou o seu corpo do dela, lenta e inexoravelmente, sentiu as formas dela encostadas a si, um batimento ritmado proveniente do peito dela, o movimento da caixa torácica. Bia inclinou levemente a cabeça e Nuno roçou-lhe o pescoço com os lábios. A mão direita de Nuno descera já do pescoço e dobrara-se em concha, adoptando a forma do seio de Bia. O mamilo dela reagiu. A mão de Nuno continuou a sua descida pelo ventre, pelas ancas, até às nádegas. No regresso, a mão emaranhou-se delicadamente nos pêlos púbicos dela. Nuno perguntava-se se verificaria mais alguma reacção no corpo de Bia.
A distância a que estava do corpo dela – uns escassos centímetros – era-lhe já insuportável. Passou os braços por baixo das axilas dela e, com as mãos sobre as omoplatas, puxou-a para si, até sentir que já não havia mais distância. O seu sexo, ao contrário da boca, ainda relutante, estava pronto e decidido. Nuno penetrou-a e pôde verificar que a semelhança com os humanos se estendia ao íntimo de Bia. No último momento, teve medo de ejacular no seu interior e retirou-se. Bia tinha estado passiva mas cooperante. Dir-se-ia, paciente.

Não foi necessário, à BioFax, nenhum período de adaptação ao seu detentor, já que o tinha vindo a conhecer por meio de informações fragmentadas que o seu coordenador central sistematizara, formando um todo coerente, flexível, adaptável e mais preciso do que a consciência que Nuno tinha de si próprio.
À medida que Nuno se foi familiarizando com a presença de Bia, a lembrança de que ela era uma Bio-facsímile foi-se esbatendo, até quase desaparecer. A boca de Nuno conhecia já todos os recantos da dela e a única coisa que distinguia a sua relação sexual com Bia da de uma mulher era que aquela se revelava cada vez mais plena. Aliás, toda a interacção com a Biofax se revelava satisfatória para além de todas as suas expectativas. Bia conhecia o trabalho de Nuno, compreendia-o melhor que ninguém, apoiava-o, assistia-o, criticava-o, inspirava-o, enriquecia-o. A nível pessoal, Bia supria todas as necessidades do seu possuidor.

Tinham decorrido cerca de dois meses desde o dia da assemblagem da Biofax, quando Nuno se apercebeu, de súbito, de que tinha deixado progressivamente de trabalhar e de que passava todo o seu tempo perto do corpo de Bia, numa distância cada vez mais ínfima, quase imperceptível. Nuno deu-se então conta de que se tinha vindo a instalar no seu íntimo um desconforto relativamente a Bia e, a partir daí, esforçou-se por descobrir a razão, aparentemente despropositada, desse sentimento.
Bia era tudo o que Nuno sempre sonhara e muito mais. Não havia nenhum aspecto da sua vida que não tivesse sido melhorado pela simples presença da Biofax, que adivinhava a sua mais insignificante necessidade, vontade ou simples capricho, ao ponto de já não restar nenhuma necessidade que não tivesse sido suprida, nenhuma vontade incumprida, nenhum capricho insatisfeito. Nada por preencher, satisfação total.
Com a desculpa de uma sobrecarga nos níveis de energia consumidos, Nuno explicou a Bia que teria de desmontá-la, temporariamente. Solícita como sempre, Bia assentiu. Nuno devolveu cada fracção da Bio-facsímile ao seu invólucro protector, revivendo as memórias que lhes estavam associadas. Com gratidão, mas sem pena, Nuno regressou à sua existência solitária, insatisfeita mas repleta de desejos.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Josefa

A Josefa, de rolos eternos na cabeça, bata às flores miudinhas, armações quadradas, de massa castanha, a suster umas lentes que lhe apequenam os olhos, chinelos orlados de um pêlo gasto, como de um rato tinhoso, mãos desbotadas pela lixívia e língua condimentada pela inveja, a Josefa, não se priva de espreitar-me por cima do ombro quando me sento ao computador, com ar de quem não diz, mas pensa “Lá está esta outra vez no ‘tequeleteque’! Deve achar que sabe escrever, a ‘dotôra’! Olhem-me p’ra isto! Pff!”.
E eu, encolho-me, para que os seus olhos mesquinhos possam atentar melhor no desastre que ocorre no monitor, que ela apenas pressente, pois não lê uma única letra, para que confirme o que já sabe, sobranceira, do alto dos seus chinelos puídos, para que o seu juízo dite o meu silêncio, de uma vez por todas.
Mas a Josefa disfarça, quando a encaro, rogando que desfira o golpe de misericórdia, que ponha a nu a minha torpe falta de talento, poupando ao mundo mais outro texto sem sabor. Ela disfarça e varre o chão com mais afinco, repara, subitamente, numa mancha que ali vê, mais por fé do que por acuidade de visão, raspa-a com a ponta da unha e sai.
Sai, deixando-me a sós com o monitor salpicado de bichos negros e incompreensíveis, que o analfabetismo da Josefa parece que se pega, e, sem me apoquentar com o que lá possa estar escrito, colo o dedo na tecla delete, desligo o computador e vou passajar as meias (sempre com fome de remendos) endireito os óculos, ajeito a bata, ponho um rolo que tinha descaído no sítio, escondo a alça do sutiã, teimosa e exibicionista, e deixo-me de ‘tequeleteques’.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Zorra (pião grande)

Toninho chegou à escola exibindo entre as bochechas o maior sorriso que a sua cara já lhe tinha conhecido.
Passou pelo grupo do Zé Grilo, debruçado sobre os berlindes, sem ficar embasbacado a olhar, como era seu costume. Encostou-se à parede da escola, sem tirar o sorriso da cara nem as mãos dos bolsos.
Passado um bom bocado, o Quim, intrigado com a pose, aproximou-se do Toninho. Encostou-se também à parede, sem dizer palavra e sem tirar os olhos dos bolsos do sorridente colega. Toninho conseguiu ainda chamar a atenção de mais um ou outro rapaz. Quando achou que já tinha público suficiente, retirou finalmente as mãos dos bolsos, trazendo na direita, o maior pião que alguém já vira nas redondezas!

Corno

O Alfredo era um tipo que cuidava o visual: camisa aberta para deixar respirar o pelame, cabelos sob o controle da brilhantina, Old Spice a rodos pelo corpo todo, bigode sempre abaixo da linha inferior da boca e, a sua imagem de marca, cordão de ouro com um grande corno dependurado.
Quando passava em frente ao Café Sporting, inchava o peito aos comentários de "Ali vai o maior corno do bairro!", que Alfredo atribuía ao pendente oferecido pela mulher. O palerma, nunca percebeu que a prenda a que todos se referiam, era outra.

- Anda Tó, anda!
O Tó avançava menos do que o que recuava. Podia perceber os preparativos em volta: tábuas corridas a servir de mesas, broas a cozer no forno, malgas dispostas em fila, prontas para receber o vinho, queijos de intenso odor, tudo isto num vaivém de saias, que às mulheres é que tocavam estas tarefas. Os homens dispunham-se a outras actividades, nas quais o Tó preferiria não ter participação.
- Vá que se faz tarde!
O Tó não se ralava nada em atrasar os planos, cada minuto conseguido era-lhe precioso. Mas quando os homens uniram forças, agarrando-o pelo pescoço, pelo corpo, pelos membros, enfim, onde calhava, ele compreendeu que já não poderia adiar mais o momento a que com todas as suas forças se esquivara. Chegado a onde os outros o queriam, já só teve tempo de ver, erguido no ar, o cutelo fatal. Ia haver chouriça!

Equus

Álvaro tinha dois cavalos: um, que ele montava, e outro, que seguia ao lado, a passos equestres executados pela metade, dada a sua condição bípede.
O cavaleiro regozijava-se em testar os limites de ambos animais - o relinchante e o falante. Saltava por cima do silvedo, passava por lamaçais, mesmo que o seu destino não o justificasse, com o único propósito de proporcionar-se o espectáculo da nobreza equídea e da miséria humana, à qual, do alto da sua montada, escapava. Nem no leito as duas criaturas de sua pertença se distinguiam, uma vez que ambos repousavam dos esforços diurnos sobre camadas de palha. Mas, apesar de tudo, só uma coisa invejava o lacaio ao seu congénere: ter quem tão diligentemente lhe afagasse o pêlo.

O Melga

B. Melgaço era um melga. Quando apanhava uma mulher distraída, colava-se-lhe todo, tornando impossível ignorar o seu mau hálito e o cheiro desprendido das permanentes auréolas de suor nos sovacos.
Aquele hábito nojento de sorver o próprio cuspo no fim de cada frase, afastava até os mais intrépidos ouvidos. Depois eram também as banhas a espreitarem por entre as aberturas da camisa segura no limite dos botões, os cabelos sebosos puxados de orelha a orelha e, a rematar, a unha do dedo mindinho sempre comprida, a causar náuseas só de imaginar-lhe os usos. Não admira, pois, que aos quarenta e um anos ainda não tivesse provado carinhos de fêmea.
Os tostões que poupara na sua higiene, valeram-lhe um razoável pé de meia e, na véspera do seu quadragésimo segundo aniversário, o melga estava disposto a fazer render os seus cobres.
Tinha pegado em todo o seu dinheiro e dividira-o em setenta montes de notas de 20 euros. Setenta, porque as letras do alfabeto são 23 e o pudor do melga não lhe permitiu manter o resultado da sua multiplicação por três.
Depois, percorreu a lista telefónica em busca de setenta nomes femininos. Anotou-os a todos numa folha de papel e começou a ligar para cada um deles.
Propunha a cada mulher com quem falava o envio de um gordo maço de notas em troca de uma noite nos seus lençóis.
Das setenta mulheres a quem ligou, de nenhuma obteve uma resposta inequivocamente afirmativa, mas Melgaço tinha fé nos seus santos ‘euricos’.
Refastelou-se no maple e ligou a televisão no canal que lhe servia de consolo para as noites sem companhia. Perante a perspectiva de poder ter uma mulher aquela noite, começou a ficar entusiasmado com as imagens do ecrã.
Impaciente, não foi capaz de guardar a satisfação para mais tarde, mas a gordura que lhe minava o coração, boicotou-lhe o prazer, e Bruno Melgaço não passou da meia-noite.
No marco de correio em frente de casa, setenta envelopes selados esperavam a chegada aos seus destinos.

António

António Balazar tinha entre pernas uma caprichosa peculiaridade: a dita só ficava dura quando o seu orgulhoso possuidor ditava ordens idem. Era vê-lo a juntar o povo em estádios, segundo uma criteriosa escolha que, no fundo, era aleatória, a bloquear as saídas com militares blindados e a exercitar polegares, qual imperador romano, com forte pendor gravítico que, quase invariavelmente, selavam o destino dos pobres coitados que outro mal não fizeram senão errar no país de nascimento.
Os arguidos (com esta designação dissimulava ele o fim certo que esperava os desgraçados), deviam superar uma série de absurdas provas, mostrando os seus talentos para manterem-se vivos, pelo menos até uma próxima convocação.
Balazar, de um patriotismo pimba, apreciava sobretudo o kitsh, o belo-horrível. Corpos disformes em strip-teases de mau gosto, mudos a cantar o fado, pernetas a dançar o fandango. Quando aparecia um número particularmente horrendo, o chefe da nação comentava entre dentes “Aqui há talento!” e o seu entre pernas ressuscitava, reclamando a presença do operador do milagre nos seus aposentos, instalados por baixo das bancadas, que o momento não era de desperdiçar nenhum minuto. Caso o milagreiro, macho, fêmea, novo, velho, humano ou bicho, fosse capaz de repetir a proeza, podia contar com mais algum tempo de vida, embora não fosse claro que isso constituísse uma verdadeira vantagem.
Quanto aos restantes assuntos da nação, era simples: os assuntos externos, não tinham, pura e simplesmente, existência - era um país orgulhosamente só; os assuntos internos, não ultrapassavam o âmbito das virilhas do ditador.
E que não cause admiração o facto de Balazar se manter no poder. Afinal, já outros ditadores antes dele, haviam sido considerados pelo povo, em circunstâncias de absoluta e livre democracia, como um dos dez Grandes do País.

"Rica em Sonhos"

Noémia cantarolava o genérico da Floribella enquanto rabiscava, no verso de uma conta de supermercado, a lista das coisas que era preciso comprar (não tenho nada…). Abre as portas do armário da cozinha, pára para pôr mais comida ao gato, espreita a lingerie que a vizinha do 2º direito está a estender e retoma a tarefa.
“Ui, já se me acabou o 'espaguete'! Da maneira como se come nesta casa, mais vale trazer logo 3 pacotes!... (… sou ric’em sonhos…)”.
Numa caligrafia que em nada melhorou desde que terminou a quarta classe, aponta os 3 pacotes de esparguete no pedaço de papel . Liga o rádio, sempre sintonizado na Renascença e abana as ancas ao som da música que continua a trautear mentalmente.
“(…mas tenho, tenho tudo…) 'Féri' p’á loiça… palha d’aço… 'dabliucê' pato… dos produtos da limpeza acho que não preciso mai’ nada.”.
Noémia tira os óculos que, ultimamente, lhe fazem muito calor na cara. Aliás, ultimamente, parece que tudo lhe faz calor, apesar de estar em Janeiro.
“Ai, credo!”.
Senta-se no banco a abanar-se com o parco papel. Quando lhe passam os calores, volta a olhar para o armário da cozinha, em busca de mais mercearia em falta.
“Arroz ‘inda tenho… farinha tam’ém… 'espaguete'… Mau!... Mas eu não apontei o espaguete?... Sim! Ai, esta minha cabeça!... Espaguete não é preciso, tenho 3 pacotes (…não tenho nada, mas tenho, tenho tudo…)”.
Abre o frigorífico e passa o interior em revista.
“A Becel p’ó costerol: 2 pacotes; os iogurtes de 'Alô' Vera: aí… 2 embalagens; Limiano: 1 bola (…mas tenho, tenho…); as verduras… compro no mercado, na banca da Saõzinha, são mais fresquinhas…”.
Ainda não tinha fechado completamente a porta do frigorífico quando voltou a abri-la.
“Vou comer o iogurte que ‘tá ali, antes que acabe o prazo. Ai, não pode ser! ‘Inda agora só aqui havia um iogurte e agora estão cá 2 embalagens!... E o Limiano… a Becel! Que carago! Ou eu estou doida ou aqui há dedo do demo!”.
Noémia benzeu-se, beijando os dedos no fim.
“Valha-me S. Bentinho da Porta Aberta! Tudo o que ponho no papel aparece-me aqui!”.
Desta vez os calores atingem-na de tal forma que a Noémia tem de desapertar alguns botões da bata e ir para a varanda, receber o ar fresco da manhã. Permanece lá até lhe passarem os calores e descobrir uma maneira de tirar aquilo tudo a limpo.
“Ah, mas eu hei’descobrir o que ‘tá-se aqui a passar! Ou não me chamo Noémia da Encarnação! Hei-de, hei-de! Quando a Magda armou aquela tramóia à coitadinha da Floribella por causa do Federico Fritessevalem, quem é que deu logo por ela, quem foi? A Noémia! Até mandei uma carta p’a Carnaxide à’visar a pobre coitada!”.
Empunhando o coto do lápis como se fosse uma arma, Noémia começa a anotar, no que sobra de papel, todos os itens de supermercado que lhe vêem à cabeça. Deixando-se levar pela volúpia do acto, atafulha o papel com os seus escritos infantis. Ainda suada do esforço que supôs aquela batalha pelo verbo, abre todas as portas de par em par e constata, entre incrédula e inebriada, que, não só estão lá todas as coisas que apontou, como se encontram nas quantidades certas!
Cai, com os joelhos que as mini meias deixam a descoberto, na tijoleira da cozinha, elevando os braços celulíticos em direcção à lâmpada fluorescente.
“Milagre!”
Lágrimas de contentamento saltam-lhe, em esguichos, dos olhos sapudos.
“As coisas que eu escrevo aparecem!”
Noémia, que não passou da quarta classe, nunca antes tinha suspeitado terem os riscos sobre o papel semelhante poder.
“Será que é só com a lista das compras?”
Com esta pergunta a forçar-lhe o ar em borbotões goelas adentro, decide testar os limites (ou a infinidade) do seu poder. Lembrando-se do santo António que o gato da vizinha do lado lhe tinha partido, quando uma vez que lhe entrou em casa, à socapa, pela janela da marquise, escreveu devotamente nas páginas centrais da TV Guia: imagem do Santo Antoninho com o Menino Jesus nos braços. Olhou, temorosa, para cima do frigorífico, no espaço entre o galo de Barcelos e a chaminé de Tavira. Lá estava o santo, com o seu hábito castanho, segurando um bebé de um tamanho desproporcionadamente grande. Noémia acreditou ter sido banhada pela graça divina!
Era preciso que usasse o seu dom em algo realmente importante, um gesto grandioso que os véus do olvido jamais cobrissem. Abre novamente a TV Guia, nas páginas com o resumo das novelas e, num estado de gloriosa ventura, reescreve o final da Floribella.

Ressaca

Três da manhã. As rabanadas tinham-lhe caído mal. O brandy, o irish e a ginjinha não ajudaram. Cambaleia até à casa de banho e mal tem tempo de chegar à sanita para expulsar tudo o que não traz agarrado às entranhas.
Da casa de banho, segue para a cozinha. Água das Pedras a rodos pela goela abaixo. Melhor.
Na peregrinação pela casa, toca a vez ao escritório, o local do seu calvário. Senta-se em frente ao computador mudo e negro. Liga-o. Quer vomitar palavras azedas no monitor. Bater em cada tecla, em cada inicial dos nomes que detesta até à náusea. Enche páginas de ágrio desdém até se sentir aliviado. Arrota.
No tecto que os seus olhos fitam, começa a desenhar-se a silhueta que se lhe tinha esparramado na vista na noite anterior. As pernas da cunhada. O rabo da cunhada. O decote da cunhada. Através do decote, as mamas da cunhada.
Os dedos agora gulosos, babam, trémulos, toda a extensão do teclado. No disco duro, um tropel de infantilidades de cariz porno-sentimental.
Recosta-se na cadeira e fecha os olhos, abrindo descaradamente a imaginação. “E se tivesse o poder de fazer acontecer o que desejo? E se os acontecimentos tivessem lugar ao mesmo tempo que os escrevo?”. Com as hormonas a latejarem-lhe em todos os pontos sensíveis, começa, desvairadamente, a desenhar no portátil o mapa dos seus desejos.
Inicia no momento em que a cunhada se debruçou sobre ele para servir-se de mais bacalhau com grelos e ele lhe sentiu o cheiro a suor misturado com o perfume. Faz com que ela se sirva de uma dose extra, gozando o odor de cada um dos seus poros. Enche-lhe mais vezes o copo de vinho, para fazê-la esvaziá-lo em seguida. Aproveita para encher também o copo da irmã da cunhada, porque sabe que ela não aguenta o álcool. Atolada em tinto, a mulher não consegue dar nem mais um passo e tem de ficar a passar a noite em casa dos pais. A cunhada tem mais resistência e pode levá-la a casa. Entra. Entra no apartamento, entra na sala, entra no quarto, entra na cama, entra na cunhada.
Sai do escritório directamente para a casa de banho, agarrando o meio das pernas. Abafa a custo um prazenteiro “aaahh!”. Lava as mãos, apaga a luz e deita-se escrupulosamente do seu lado da cama.

Não sabe quantas horas dormiu. A mulher já se levantou. Tenta erguer-se, mas não consegue. Tenta alcançar o relógio para ver as horas, mas o seu esforço é em vão. Verifica, petrificado, que o controlo sobre o seu corpo se encontra circunscrito à sua cabeça. Daí para baixo é tudo um bando de membros insurrectos. Aperta os olhos com força. Fica assim uns bons momentos. Abre-os. Nova tentativa de movimento - gorada. “Porra!”.
Sente o suor frio que lhe brota das raízes dos cabelos. O tempo passa, zombeteiro, sem que nada aconteça.

“Estás acordado?”. Sem esperar pela resposta óbvia, a mulher atira nova pergunta, no mesmo tom distraído: “Queres alguma coisa?”. “Quero!”, grunhe ele, desesperado, “Quero sair daqui!”. “Ah!...”, é a lacónica resposta dela.
A mulher continua no seu vai-vem pelo quarto. Abre e fecha portas. Abre e fecha gavetas. Anda. Pára. Volta a andar. Mexe-se, desenvolta. O homem não aguenta mais. Grita! Uiva! Urra!
“Queres que te leia alguma coisa?”. O homem não consegue identificar a emoção que espreita por trás destas palavras. A mulher sai do quarto por um minuto e retorna com o portátil dele na mão. “Queres ouvir?”. Sem esperar pela resposta do homem, ela começa a ler.
…no momento em que a irmã se debruçou sobre ele para se servir de mais bacalhau com grelos, sentiu-lhe o cheiro a suor misturado com o perfume. Fez com que ela se servisse de uma dose extra, gozando o odor de cada um dos seus poros. Encheu-lhe mais vezes o copo de vinho, para fazê-la esvaziá-lo em seguida, porque sabia que ela não aguentava o álcool.
O homem reconhece vagamente o texto, mas há qualquer coisa que não está bem… A mulher continua.
Ela ajuda a irmã a deitar-se no sofá, é impossível ir mais longe. Tapa-a com uma manta. Despede-se dos pais e sai com o homem. Sentado ao volante, com as veias encharcadas em álcool, o homem não controla o carro. Despistam-se. Embatem num muro. Ela perde os sentidos. Quando volta a si, olha para o homem que não se mexe. Uma ambulância leva-o. No hospital, dizem-lhe que o homem está tetraplégico.
“Claro que ainda não acabei...”, diz ela.

Marli

Marli olha-se no espelho: os papos a amparar-lhe a queda do olhar, as linhas que divergem a partir dos cantos dos olhos, caminhos que levam a lado nenhum, a pele a amarelecer como um papel antigo, a linha dos lábios cada vez mais dura e cerrada, os pêlos a ensombrarem-lhe o rosto... trinta e oito anos. Continua: as mamas apontando o umbigo, a barriga gretada de ter albergado mais-um-no-mundo, a textura carregada de concavidades da sua pele…
Marli olha para lá do espelho. E não vê nada.
A trintona – é esse o seu estatuto – cobre com peças de roupa o corpo que transporta (há quanto tempo?) pela vida e com maquilhagem a cara que tem de apresentar lá fora. Sai.
Os sons da rua a introduzirem-se-lhe ouvidos acima e as silhuetas habitadas com que se cruza, quase conseguem dar-lhe a impressão de que participa na azáfama do quotidiano. Olha, indiferente, as montras iluminadas a berrarem “Feliz Natal”, tentando perceber qual é, exactamente, o sentimento que esta altura do ano invoca – se o alívio por não se ver arrastada pela furiosa demanda do presente certo, se o vazio por não ter ninguém a quem dá-lo.
Na paragem do autocarro, aguarda a viagem de todos os dias até a um minúsculo escritório num bloco de apartamentos dos anos setenta, no centro da cidade, onde passa seis horas seguidas a fingir orgasmos por telefone.
Hoje tem clientes como cães – a pressão da quadra não perdoa. Para além dos habituais que invariavelmente pedem o mesmo, recebe a chamada de um cliente novo. Mais para passar o tempo do que por curiosidade, mete conversa com ele. Casado há pouco tempo e com um filho a caminho, o homem quer ouvir por telefone os gemidos que já não ecoam em casa. Conta que nasceu na casa de banho de uma área de serviço da A1 e que o seu primeiro enxoval foi uma manta de papel higiénico. Diz que na irónica data de 25 de Dezembro faz vinte e dois anos que o entregaram à guarda de uma instituição social, de onde só saiu, por seus próprios meios, aos catorze.
Esgotadas as confissões, o homem reclama por aquilo ao que ligou. Marli, a quem saem mecanicamente os gemidos conforme a encomenda, não emite o mais mínimo som. No dia de Natal faz vinte e dois anos que numa viagem entre Lisboa e Porto parou numa área de serviço.

Alberta

Flap, flap, flap, flap, flap.” Aquele som, simultaneamente irritante e excitante, fazia-a ranger os dentes. Imaginava-se a ultrapassar todas as limitações, contra as quais não podia lutar e gozava, de olhar alheado, a cena que nunca iria ter lugar.
Aquele pescoço longo, aquele mover de cabeça gracioso, o delicado andar… Aquele espectáculo que parecia montado para si, provocante, desafiador… Todos os dias se submetia, exaltada e impotente, ao desfile da graciosa criatura que mesmo durante o seu sono continuava a exibir-se, incólume, soberba, inalcançável.
Começou a perder o apetite, a passar o tempo em vigília, a desinteressar-se de tudo o que não fosse a contemplação daquela que tão febrilmente desejava. Os olhos encheram-se-lhe de um brilho delirante e passado pouco tempo, nada mais os habitava senão o reflexo da sua obsessão. Era feliz nesta infelicidade.
Um dia, porém, o que até então parecera completamente impossível, aconteceu. Alberta nem conseguia acreditar no que os seus olhos lhe diziam! A porta, a mesma que durante dias a fio tinha estado sistematicamente fechada, estava a ser aberta, precisamente por quem lhe tinha impedido o encontro com o seu destino.
As mãos tremiam-me enquanto segurava no puxador da porta, consciente, mas não segura do que estava a fazer, do que iria, certamente, acontecer. Repeti, para dissipar-lhe as dúvidas – Alberta, sai… podes ir – e engoli em seco.
Hesitante e incrédula primeiro, entusiasmada depois, Alberta atravessou a ombreira da porta e parou do lado de lá, enchendo o peito de ar livre e coragem. Tinha chegado a hora por que tanto ansiara e temera. A sua desejada não tinha chegado ainda e restavam por isso a Alberta mais alguns minutos de paciente espera.
Flap, flap, flap, flap, flap.” Pela primeira vez, Alberta estava verdadeiramente feliz por ouvir aquele som. Semicerrou os olhos para olhar a fonte do som que vinha na sua direcção, com o sol a brilhar por trás. Sem deixar de fitar a etérea criatura, avançou sem pressa, quase imperceptivelmente, na sua direcção. Quando já estava estonteantemente perto, Alberta franqueou a distância de um salto, cravando os dentes no pescoço da pomba e caindo da varanda abaixo no impulso. Eu, não me movi, já não era o primeiro gato que perdia desta maneira.

domingo, 25 de março de 2007

(As coisas que se escrevem a altas horas da madrugada)

Num reino mesmo aqui ao lado, onde o rei se sentava no trono e quem governava era outro, vivia uma princesa velha, gorda e feia. Apesar de ser muito velha, feia e gorda, a princesa tinha uma coisa boa - não era especialmente inteligente e era incapaz de manter uma conversa.
Como sempre ouvira dizer que as princesas devem ser casadoiras, também esta tratou de encontrar marido. O seu pai, ciente das características da filha, aconselhou-lhe um golpe de marketing: ao príncipe que passasse uma noite com ela, deveria oferecer uma segunda noite grátis.
Persuadidos pela oferta, não tardaram em surgir príncipes dispostos a experimentar os lençóis da herdeira do trono, no sentido literal, já que o trono era tudo quanto o rei possuia. Deitavam-se ao lado da princesa, concentrados no sangue que lhe corria nas veias, como forma de esquecer-lhe o corpo, mas depois que a tocavam, não ficavam.
E assim foram desfilando pelo leito principesco todos os pretendentes de que havia notícia, mas todos, sem excepção, sucumbiam ao tocar o corpo da real criatura. Até que um dia veio um príncipe que não se arrepiou com o contacto da princesa muito velha, feia e gorda. Permaneceu nos seus lençóis, depois de cumpridos os rituais acasalatórios, toda a noite. E, no dia seguinte, também não ficou.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Foto: hand, originally uploaded by djamesm

António fechava a mão, abria-a, e olhava-a, talvez na esperança de que o que lhe tinham dito que estava escrito nas linhas da palma da mão se baralhasse, oferecendo-lhe outro destino, mas as dobras que trazia já desde a barriga da mãe, não se alteravam. Considerava-se céptico em relação a todas essas patranhas das bruxas, dos feitiços e das sinas, mas o encontro com aquela mulher tinha abalado profundamente as suas convicções. Visto que a ela não lhe eram estranhos os mais íntimos pormenores do seu passado, porque haveria de escapar-lhe o seu futuro?

Já há mais de uma hora que a mulher o tinha deixado entregue às revelações que lhe fizera, ali, naquela esplanada de uma praça espanhola, onde crianças corriam atrás das pombas, jovens com as cabeças cheias de rastas se reuniam em volta de um batuque monótono e reformados gastavam as horas que todos os dias lhes sobejavam.

António fixava a palma da mão, completamente analfabeto em relação aos seus mistérios, com um nó na garganta, um aperto nas têmporas e o estômago em desbaratinada revolução. Como podia ser, como? Como poderia ele fazer a monstruosidade que a sua mão adivinhara antes mesmo daquela se lhe ter insinuado na vontade? Tinha feito centenas de kilómetros até chegar a Madrid, como um sonâmbulo, guiado não sabia por que instinto. Sim, isso era verdade. Tinha guardado na mala do carro a espingarda de que se munia nas suas caçadas, isso também era certo. E não havia dúvida de que se sentara na esplanada em frente ao hotel onde se tinha hospedado a sua mulher com uma companhia que não a sua. Mas como poderia ele levar a cabo o acto que prognosticara aquela mulher?

Convencido de que a sua mão lhe ditava o destino, António decidiu tomar o futuro em suas próprias mãos. Acabou a cerveja, entretanto morna, partiu a garrafa na beira da mesa de ferro e, com o bocado que segurava na mão direita, interrompeu as linhas da esquerda. Deixou dinheiro para a cerveja e para a gorjeta ao pé do copo, levantou-se, mergulhou a mão na fonte da praça durante uns minutos, tingindo a água de vermelho e, atando o lenço em volta, meteu-se no carro rumo a casa, feliz por recuperar o cepticismo com que sempre encarara as videntes.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Amor virtual


Foto: Things and Apperitions, originally uploaded by crescentsi

Antes de deitar-se, tal como o facilitador de desinquietamento espiritual lhe aconselhara, desabotoava a camisa e introduzia o cabo UC na ranhura por baixo das costelas, descarregando para os circuitos de comunicação partilhada tudo o que acumulara durante o dia, ao abrigo de um avatar incaracterístico e de um alias vulgar. Dormia, depois, um sono sem sonhos, confortado pelo esvaziamento experiencial que efectuara e por se crer no anonimato.

Na central de processamento de experiências vivenciais, no entanto, há muito que alguém seguia as suas descargas diárias, cativada pela sua impressionante humanidade. Mesmo sem possuir dados factuais, tais como o substantivo designativo pessoal ou a data de accionamento, ela conhecia-o intimamente e nutria por ele um sentimento que, se não estava em erro, se designara, em tempos, por "amor". Entregava-se à nostalgia daquele sentimento vintage e, em vez de enviar as entradas dele para o centro de ablução de descargas espirituais, encriptava-as e armazenava-as no seu nano-chip.

Com o passar do tempo, ela começou a ver-se na necessidade de apagar alguns dos seus próprios dados, para que o acesso e respectiva desencriptação das entradas dele, se efectuasse instantaneamente; ninguém teria paciência para aguardar a centésima de segundo que demorava o processo, se assim não fosse. A certa altura, os dados dela começaram a ser insuficientes e a entrar em conflito com as entradas armazenadas. Ela, incapaz já de passar sem as descargas dele, não hesitou em resolver as falhas, com o sacrifício de todos os seus dados. O seu chip interno, livre de contradições, pode deduzir então, inteligentemente, os dados de que necessitava para compor a pessoalidade das entradas que possuia: transcreveu-se, assim, a pessoalidade do amado para a do sujeito amador.

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Ponta Gêa

Foto: Colecção particular

Tinham-se passado trinta e dois anos desde que deixara aquele país. Agora, visita a cidade onde nasceu, como se reatasse um qualquer cordão umbilical que a ligasse a uma pátria, que lhe concedesse, finalmente, um sentido de pertença.
O bairro residencial, orlado de vivendas, onde residira, dificilmente pode ser considerado ainda o mesmo. O alcatrão da estrada já pouco mais é do que uma recordação, as paredes das casas exibem as suas cicatrizes de guerra e a vegetação, por todo o lado, reclama a sua soberania.
Chegada à rua onde morara, Maria procura o número 604. Reconhece a parede com fragmentos de ardósia, da varanda onde brincava. O jardim está entregue ao matagal e a algumas galinhas que ali procuram sustento. Entra e verifica a porta da frente, que está fechada. Dá a volta à casa até às traseiras, sobe as escadas em caracol e tenta a sua sorte na porta da cozinha. À força de empurrões, acaba por ceder, num queixume chiado. Maria prepara-se para transpor o portal da casa e do tempo.
Atravessa a cozinha, entra na sala e pára um momento. Os caixilhos das janelas foram esventrados dos respectivos vidros, as paredes acumulam camadas negras, como as árvores os anéis, e o chão está coberto de lixo e excrementos de animais. Nos quartos, o cenário é o mesmo. O cheiro dos detritos, intensificado pelo calor, obriga-a a sair.
Já cá fora, Maria olha novamente a casa onde vivera os primeiros sete anos da sua vida; olha-a demoradamente, confirmando a impressão que tivera assim que entrara nela: a de que aquelas paredes não guardavam nenhuma memória, apenas testemunhavam desastres. Em nenhum canto daquela casa, daquela rua, daquele bairro, daquela cidade, daquele país, poderia ela encontrar qualquer presença de si mesma. Ela era, descobrira por fim, uma alma portátil, sem raízes em lugar algum.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

Céu de papel

Foto: superbey, originally uploaded by misterno

Como podia o cigarro manter a chama acesa num dia tão encharcado, era algo que Gonçalo não perdia tempo a tentar decifrar; já o incêndio a que se fintava aquele céu de papel, tinha fácil explicação: era a chuva, de um tamanho miudinho mas persistente, que aguava todos os intentos de atear fogos na paisagem. Porque é que Gonçalo desejava purgar com labaredas aquele lugar, só poderia ser compreendido mantendo o espaço, mas recuando no tempo.

Foto: Walk On By, originally uploaded by GaryP

Arados, tinham sido os seus pés, sulcando trilhos naquele monte e no vale onde desaguava. Na ausência dela, preparara os caminhos para que, quando chegassem os seus passos, florissem espigas, para que, ao voltar a casa, levedasse o pão.
De margaridas vestia a mesa da cozinha, alimentando-as a água da torneira vertida num copo; com sopa e verduras acariciava o estômago dela e, à noite, adormecia saciado do seu cheiro.
Pensava ele que eram felizes, que o contentamento que sentia se estendia a ela. Nunca reparou no olhar ausente que trazia no rosto, nos braços laços com que o rodeava na cama, nas verduras deixadas na borda do prato. E por isso, quando a viu pisar os caminhos que ele semeara, acompanhada de pés estranhos, não compreendeu a leveza no andar dela, o brilho dos cabelos que ao pé dele nunca soltava, as mãos que afinal gostavam de agarrar-se a outras.


Foto: Seul, originally uploaded by mmarsupilami

Passaram-se meses, mas Gonçalo ainda procura, nas nervuras dos troncos das árvores, na espessura da lama dos charcos, nos ramos de onde se ausentaram as folhas, a razão para os passeios daquela que amava terem trocado de companhia.
«Havia aquela expressão, claro - "Mais vale só do que mal acompanhado". Sim», pensou Gonçalo, «se ela não era capaz de apreciar os meus cozinhados, se os seus cabelos não encontravam espaço, junto de mim, para soltar-se, mais vale ter-se afastado. Eu... Eu estou bem assim. Ocupo os dois lados da cama, uso as almofadas sobrepostas, não tenho de mudar de canal nem de emissora para agradar-lhe; não tenho que fazer nenhum esforço para mantê-la ao meu lado, para sentir o odor familiar da sua pele ao acordar, para rechear da sua voz os meus ouvidos. Estou bem, assim, neste silêncio, nesta cama fria, nesta mesa posta em números ímpares...»

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

O fim (a partir de uma citação* de "O Senhor Calvino", de Gonçalo M. Tavares)

Foto: \/, originally uploaded by fabbio

Calvino chegara à esquina da rua Sevignon para descobrir, com espanto, que afinal aquela não era a morada do infinito, mas a do seu contrário.
A cidade terminava ali, para começar a repetir-se, simetricamente, do outro lado. A pergunta que pairava no cérebro intrigado de Calvino era se, ao atravessar a rua, se tornaria o senhor Onivlac.
Ponderou largamente sobre as implicações de tal descoberta e decidiu que a satisfação da curiosidade filosófica justificava bem os possíveis riscos.
Cruzou, pois, para o lado de lá e ficou, por breves momentos, à espera. Seguidamente, dirigiu-se ao café onde costumava sacudir, com ingestões de cafeína, o torpor matutino, expectante em relação ao que encontraria. Não foi sem algum desapontamento que verificou que a única diferença entre os dois Cafés era que naquele segurava a chávena com a mão esquerda e que todas as coisas, exactamente as mesmas, se encontravam ali numa disposição simétrica.
Calvino continuou a sua expedição pela cidade do lado de lá, apenas para descobrir que, à parte a simetria, nada mais distinguia os dois lados da esquina da rua Sevignon.
De regresso a casa, operando já com a habitual dextralidade, Calvino afundou-se na sua poltrona, esmagado pela devastadora descoberta que acabara de efectuar. No fim do mundo não se encontra, nem o infinito, nem o fim, mas tão só a sua exacta (ainda que simétrica) reprodução.
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* «Havia encontrado o que tantos procuravam: o infinito. Apontou a morada no seu bloco de notas. Ficava no final da Rua Sevignon»

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Hélia (Gaspar, Helena)

Foto: pure gold, originally uploaded by darkmatter

A pouco e pouco, à medida que ia aprendendo os passos da dança de Helena, Gaspar avançava mais por entre as espigas.
Um dia em que Helena abriu os olhos enquanto rodava, viu, intermitentemente, um homem vestido a rigor, já demasiado próximo para poder ignorá-lo. Ali, no meio dos campos, Gaspar secundou todos os movimentos de Helena, substituindo pincéis pela matéria do seu corpo.
As danças sucederam-se, com coreografias vindas de tempos imemoriais, que ambos recriavam à medida dos desejos dos seus corpos.
Muito mais tarde, o pas-de-deux tinha corpo, cabelos cor de trigo e nome nascido do vento: Hélia, filha dos campos de espigas.

Gaspar (Helena)

Foto: G-[I], originally uploaded by Florian Szillat
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Como uma espiga mais erguida no campo, Gaspar observava Helena. Costumava levar uma câmara e fotografar a dança dela, com o obturador regulado para baixas velocidades, de modo a registar as linhas que ela traçava no ar, com os braços, as mãos, a cabeça, as pernas, o corpo.
Regressado a casa, mergulhava os negativos em sucessivos banhos, até que a dança de Helena surgisse, alquimisticamente, no papel, com o qual cobria as paredes do estúdio. Depois, escolhia a banda sonora que lhe parecia mais adequada e reproduzia na tela, com um pincel molhado, os traços de Helena. Ainda que por distintos meios, Gaspar partilhava assim o baile nos campos.
(continua)

Helena

Foto: don't try this at home, originally uploaded by mahese

Helena... O seu nome era tão leve quanto os seus passos, de um bailado particular só por ela dançado.
Em casa, o pai viúvo e os dois irmãos mais velhos, de modos rudes como as mãos, habituados a ter como horizonte o chão que lavravam, riam-se dos movimentos baléticos de Helena. Era por isso que já há muito ela tinha trocado o soalho doméstico pelos campos em pousio, que só as gralhas frequentavam. Aí, a sua dança alargava-se, dando mais impulso à alma.
Naquelas tardes dançadas, Helena era feliz. Mal sabia ela que, ao longe, uns olhos aplaudiam em segredo os seus desenhos gestuais no vento.
(continua)

O guarda-chuva escarlate

Foto: Red umbrella on a wintwer's day, originally uploaded by Little Jimmy in Milwaukee

Verónica, dezasseis anos feitos, queria saber o que era o amor. Proclamava-o na cor dos seus lábios, no sublinhar dos olhos, no cingir da roupa ao corpo. Ritmava o seu desejo com o balançar das ancas.
Aos homens da vila não lhes tinham escapado os sinais, mas Verónica era a filha do Presidente da Junta, o que lhes resfriava os ânimos. Retribuído com a distância, o corpo de Verónica cada vez gritava mais alto. Até que chegou um dia em que a cama da rapariga amanheceu fria e intacta.
Familiares, vizinhos, todos acorreram a auxiliar na busca, mas o único rasto que encontraram, foi o seu guarda-chuva escarlate largado na neve, junto a pegadas de animal quadrúpede. Verónica nunca regressou, mas em certas noites, quando a lua parece prenha, vêem-se reflexos vermelhos vindos das entranhas do bosque.

Foto: umbrella, originally uploaded by mivella

Naquele dia em que, em vão, todos procuraram Verónica, Armindo tinha-se deixado ficar para trás. As suas mãos, tão gulosas quanto os seus olhos, queriam ter o guarda-chuva só para elas. Quantas vezes, desde a porta do café, bagaço na mão, não tinha ele visto Verónica passar, rodopiando o guarda-chuva como rodopiava as ancas? Armindo pegou no guarda-chuva encarnado e encostou o punho ao nariz. Reconheceu o perfume indiscreto da rapariga, tantas vezes alojado nas suas narinas à passagem dela. Desde então, a mata tornou-se o local de romaria de Armindo. Sempre que a lua estava cheia, passeava por lá, com uma candeia numa mão e o guarda-chuva noutra, como um fosforescente cogumelo escarlate.


Foto: une porte rouge, originally uploaded by Bernat_83

O tempo foi passando, mas a imagem de Verónica na memória de Armindo, não. Na vila especulava-se sobre o destino da rapariga mas, apesar das díspares e mais inverosímeis versões, o fim a todas era comum: tinha-se, por certo, desgraçado.
A Armindo pouco ou nada importava que Verónica se tivesse desvirtuado, no bosque ou noutro lugar qualquer, com cristão ou besta: esperaria sempre por ela. Emancipada, pela fuga, do apelido paterno, Verónica era agora uma mulher, apenas uma mulher, toda uma mulher. E Armindo era um homem. E era para lhe dar conta da sua espera, se um dia Verónica voltasse, que Armindo pintara a sua porta de vermelho.
Mas a porta não era o único pormenor vermelho que Armindo introduzira no seu quotidiano: a flor, de um vermelho carnudo, que nunca faltava na jarra da sua mesa-de-cabeceira, o lenço de assoar, impregnado do mesmo perfume que Verónica usava, e outros detalhes, mais íntimos. Pela cor e pelo cheiro iludia Armindo a ausência da rapariga, agora mulher.
Os anos, contudo, nunca se apiedaram da espera de Armindo, e o regresso de Verónica nunca aconteceu.
Armindo morreu virgem e tem, a velar a sua campa, uma luz vermelha que, ninguém sabe como, nunca se apaga.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Ondas laranja

Foto: Ondes oranges, originally uploaded by mmarsupilami

Eram as chamas que vinham lá.
As mãos, sempre tão hábeis a fazer crescer coisas, nada podiam contra a onda de morte que se precipitava para os campos, numa fome voraz, que nem todas as sementeiras do mundo conseguiriam saciar.
Queimavam-se as colheitas, queimavam-se as horas ao sol a cavar, queimavam-se os galões de água bebidos pela terra, queimavam-se as feridas inscritas pela enxada nas mãos, queimava-se o corpo sacrificado em nome das colheitas, queimava-se a comida que a boca já não haveria de provar, queimavam-se as forças para voltar a lutar. Tudo ardia no rastilho de um capricho, de uma afirmação, de uma especulação imobiliária.

Serenidade

Foto: Serenety on Loch Lomond, originally uploaded by nicolas valentin
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O sol descaía atrás dos montes e, no escuro, todos os medos tomavam forma. O lago, transparente de dia, de noite assumia-se como um espelho negro, reflectindo todas as sombras do mundo, obscurecendo memórias.
Baltazar temia e ansiava pelo encontro com as despudoradas águas. Ali, ao pé do lago, podia destapar todas as feridas - a sua monstruosidade fundia-se com o ambiente do local. O encontro nocturno com o lago ressuscitava fantasmas nascidos em terras africanas, do sangue que a terra bebeu. Neste lugar, Baltazar desenterrava o terror, voltava à convivência com aquele em que, para todo o sempre, a guerra o havia transformado.
(a continuar??)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Alice

Foto: Follow your bliss, originally uploaded by IrenaS

Alice esqueceu aquele dia, precisamente por ser inesquecível.
O tio levara-a na sua carrinha até uma praia a onde se chegava atravessando a ria por uma ponte de madeira. Junho ainda há pouco começara e o calor ainda não levava embalo.
Alice ia à frente, expandindo o olhar pelo horizonte que mudava a cada tábua pisada. O tio seguia-a, fazendo pontaria às costas dela com a máquina fotográfica. Absorta a devorar a paisagem, Alice não sentia os disparos.
No fim da ponte, de repente, a praia. A praia e tudo o mais que veio a seguir. A dor, a vergonha, o medo, a confusão, a raiva. Alice queria ter-se metido num buraco. Como não pôde, escavou um nos confins da memória, onde enterrou a lembrança do dia em que o tio a obrigou a ser mulher.

Função Pública

Foto: Enter, originally uploaded by IrenaS

Um portal no meio de um bosque que deixa quem o franqueia quase no mesmo sítio de onde saiu, era como uma maçaneta sem porta. E essa provocante e transgressora inutilidade fazia-o voltar, vezes sem conta, àquele lugar e a atravessar o umbral, para lá de qualquer lógica.
Este gosto pelo desnecessário, pelo inútil, pelo que esgota em si próprio todo o objectivo da sua existência, adveio-lhe, provavelmente, dos tempos em que era funcionário público. Naquela altura, a sua função consistia em produzir uma montanha de papéis para que o posto do colega do lado, aquele que tratava dos arquivos, tivesse razão de ser. Na repartição onde trabalhava, iam buscar-se papéis aos arquivos, faziam-se cópias certificadas dos mesmos para que estas pudessem ir, por sua vez, engrossar as fileiras de papelada a arquivar noutras repartições públicas. A burocracia, pensava ele, era um movimento gracioso de multiplicação e transladação de documentos oficiosos.
Agora que estava reformado, percorria o bosque em busca de duendes, criaturas quase tão fantásticas como um trabalhador das finanças. Ninguém acredita que possam existir pessoas devotamente dedicadas a imiscuir-se nas contas dos outros e a fazer proliferar papéis, como o Cristo os peixes. Mas havê-las, há-as.
Por entre a folhagem, Secundino (assim se chamava o funcionário público) descobriu um rasto de nevoeiro, muito do agrado da sua nebulosa mente. Seguiu-o, claro está, como quem segue as normas de um procedimento, um passo após o outro, num encadeamento sequencial sem rasuras.
No fim do caminho, erguia-se, já não um portal, mas uma fachada inteira. Que não tivesse porta, não tinha qualquer importância, pois o lado de dentro era simultaneamente o lado de fora. Um paroxismo à medida do gosto de Secundino, apurado por anos a fio a trabalhar na Função Pública. Aquela iria ser, doravante, a sua morada.
(a continuar, um dia...)

O mundo de Balduino

Foto: Taking a holiday out of this world, originally uploaded by Manuperez

O mundo onde Balduíno implantou a sua casa era muito pequeno porque a sua casa era todo o seu mundo. Do quarto à cozinha, da janela ao quintal, da porta das traseiras à sala e da sala para o universo, tudo ficava a umas páginas de distância (era assim que se deslocava Balduíno). Este homem gostava de ter o mundo à mão, o mundo na mão, a mão a abrir caminhos no mundo. Da sua poltrona tinha acesso a todos os comandos de que necessitava: o da luz, o do gira-discos e o da máquina de café.
Nas estantes possuía fragmentos de todos os mundos existidos e por existir: todos os continentes, todos os mares, os céus, os sentimentos, as cores, os edifícios, as aves, os materiais, as escalas musicais, as pontes, as anatomias, todos os versos, todas as histórias, todos os milagres, as plantas, os mecanismos, os cálculos, os silogismos, todas as imagens – a cores, incolores, fixas, em fuga, surpreendidas e surpreendentes – todos os sons, todas as esperas, todos os desgostos de amor, todos os nomes, os nascimentos, os erros, as emendas, as estradas, os becos sem saída, os fusos horários, os grãos de areia e uma foto do seu cão.
Mas apesar de tão exaustiva lista, Balduíno, todos os dias e todas as noites, e, ainda, a todas as horas que decorriam entre o amanhecer e o anoitecer e entre este e o novo amanhecer, olhava pela janela e descobria reflexos novos no mundo. Mesmo com tão aturado esforço analítico, dava-se conta de que cada coisa nova lhe baralhava e tornava ridículas todas as categorias, todas as arrumações das suas estantes e do seu pensamento.
Balduíno, insurgido contra os limites das páginas publicadas, que sempre eram demasiado estreitos para abarcar a realidade (ou a ficção, para o caso, dava no mesmo) sobre a qual se debruçavam os escritos, extraiu um diluente textual do livro dos químicos e apagou à letra todas as inscrições constantes dos inúmeros volumes que povoavam as suas prateleiras, deixando todas as páginas imaculadamente brancas.
O primeiríssimo alvo da sua ira foi a "Gramática". Após a sua fúria branqueadora, toda a escrita passou a reger-se pela falta de regras, pela anarquia, a libertinagem, o caos.
Balduíno sorria, como que embriagado, perante o desgoverno das palavras que agora, mais do que nunca, se viam impossibilitadas de descrever coisa alguma.
(continua... acho : )

Cisão

Foto: You and me, originally uploaded by Guillaume!

De vez em quando acontecia-lhe isto: a consciência de si mesmo desagregava-se e perdia o fio à meada de si próprio. Sem Ariadne que lhe valesse, enovelava-se todo, não tendo ponta por onde se lhe pegar.
Ficava assim, centrifugado, até que qualquer coisa, na ponta do sapato, na manga da camisola ou no padrão das meias o devolvesse à sua morada. Eram estes pormenores, tantas vezes observados ao som monótono de vozes docentes, os heróis anónimos que o resgatavam da cisão por onde se escapava.

Avenue du Baobab

Foto: Avenue du Baobab (01591), originally uploaded by giamplume

Ernesto Chicuembo tinha subido na vida. Mudara a sua palhota para a grande avenida, à entrada da cidade, e estava pronto para tomar mulher.
Aos Domingos, atravessava a Avenida do Baobab na sua bicicleta, transístor incorporado por meio de uma complicada arquitectura de arames, ouvindo marrabentas.
Olhava as moças de capulana, com olhar de apreciador. Elas, por entre risinhos, mostravam o seu agrado.
Na sua cubata da avenida, tinha um tapete de terra batida, telhado de colmo, uma esteira e pouco mais. Mas sentia-se como num palácio, em comparação com as instalações cimentadas de que dispunha nas traseiras das vivendas dos brancos. Um dia...
Assim partilhava Ernesto o pensamento com todos os outros que se tinham visto impedidos de decidir o destino da sua própria terra, por furores colonialistas.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Petipá

Foto: mushroom, night, originally uploaded by monitorpop

Petipá correu a abrigar-se debaixo do cogumelo. Os aspersores tinham acabado de pôr-se em marcha e não queria ficar encharcado.
A relva fazia-lhe cócegas no nariz, obrigando a fisionomia de Petipá a contorcer-se em hilariantes caretas.
Passados dez minutos, quando os aspersores recolheram ao seu esconderijo subterrâneo, Petipá deixou o providencial abrigo e continuou o seu caminho por entre as verdes ondas, procurando pôr o apêndice nasal a salvo dos travessos dedos da relva.
Foi parando aqui e ali para colher margaridas, até já não ter braços que chegassem para tantas. Aí, deu-se por satisfeito e regressou ao nobre carvalho, onde as ervas dissimulavam uma pequena entrada para o interior concêntrico em que instalara a sua morada.
Minúsculo pé ante minúsculo pé, aproximou-se do leito onde dormia ainda Petipiê. Atapetou o chão com as margaridas e sentou-se à espera de ver os pés nus de Petipiê sobre as corolas das flores.
Petipá era um homem quase microscópico com um coração gigantesco.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Irlanda

Foto: Boireann, originally uploaded by DCCXLIX

Lá em baixo, abruptamente, o mar.
O vento nas costas, seduzindo-nos, sussurrando-nos desvarios de asas, apelidando-nos, provocativamente, de Ícaros. O sol, conivente.
As ondas projectando a sua saliva salgada para lá das rochas, até quase lhe sentirmos o gosto.
Para trás, imensidões de verde, os olhos a pastar.
E no fim, a pena: nunca te beijaram os meus pés, Irlanda.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Shoe

Foto: Shoe for the Girls, originally uploaded by mikerosebery

Lídia era uma menina tímida e de uma beleza, como tudo o resto em si, discreta. Tinha os cabelos da cor dos olhos, tudo cor de avelã. Não havia, nas suas feições, nada que chamasse especialmente a atenção. E, no entanto, quem reparasse nela, não a esquecia.
A mãe, uma assistente social que ocupava grande parte do seu tempo em trabalhos de voluntariado na paróquia, não admitia interferências de algo tão supérfluo como os gostos de uma menina de 8 anos, no momento de fazer compras para o guarda-roupa da filha.
Certo dia, a mãe de Lídia trouxe para casa um par de sapatos com uma sola inesgotável. Ao calça-los, os pés de Lídia rejeitaram-nos tanto como o tinham feito os seus olhos. Aquela sola condenava Lídia a muitos dias de uso daquelas aberrações andantes. Conhecendo a intransigência materna, Lídia não reclamou.

No dia seguinte, antes de ir para a escola, Lídia calçou os sapatos de validade indeterminada, depois de ter vestido uma saia e um pull-over que, em questões de estética, em nada destoavam do calçado. Pôs a pasta às costas e saiu. Na escola, não deu importância aos olhares, ainda mais embasbacados do que o costume, que recaíram sobre o par de sapatos.

No fim das aulas, Lídia não foi para casa. Era dia da mãe dar sopa aos pobres, o que significava que a menina podia faltar à sua. Foi para um descampado onde abundava toda a espécie de desperdícios, bem como poças de espessa lama. Lídia andou por lá mais do que já tinha andado em toda a sua vida. Não deu um segundo de descanso aos sapatos, decidida a provar que a sua vontade era mais resistente do que as solas daqueles.

Ao anoitecer, ainda a mãe não tinha chegado a casa, Lídia entra no quarto e descalça, definitivamente, os horríveis sapatos, derrotados e rotos. Nessa noite, Lídia dormiu feliz.

Constantino

Foto: Rocky Moorland, originally uploaded by Jon Stead
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Constantino aconchegou-se dentro do capote enquanto galgava penedos, com pernas tão seguras como as de uma cabra montesa. Levava a tiracolo a saca com o naco de broa e o chouriço, para lhe animar o corpo quando as milhas já fossem muitas. Tinha partido antes de o sol deixar o lado de lá da Terra, em busca de Jaime.
O seu filho fora para o monte com as cabras; estas voltaram, ele não. Lá no fundo do peito, Constantino sempre soubera que, mais dia, menos dia, isto havia de acontecer. Na boca de Jaime, as perguntas germinavam ainda mais que as urzes nos montes e nos seus olhos, adivinhava-se o outro lado do horizonte. Qualquer homem feito sabe que quando os olhos se fitam numa coisa, a alma acaba por ir atrás.
Constantino seguiu o sol até ao ponto onde se pôs, mais por obrigação paterna do que pela esperança de encontrar o Jaime. Para lá dos picos, as mulheres têm outro linguajar e um negro olhar que não mais larga quem o contempla. Aqueles montes só tinham espaço para Jaime crescer até se enrijecer a barba. Agora que os seus queixos arranhavam ao toque, Jaime teria de ir para outro lugar. Não era o primeiro a passar a fronteira, mas seria certamente dos últimos; aquela terra já poucos filhos tinha para dar.

N. Sra. da Boa Viagem

Foto: Reflections, originally uploaded by FreeMySoul

Júlio todos os dias repetia a mesma peregrinação até à capela da N. Sra. Da Boa Viagem. Todos os dias abria porta e janelas, para deixar que ventos ensolarados lavassem as paredes imaculadas do edifício; mudava a água das flores ou colhia outras, frescas, quando era caso disso; reacendia o círio vestido de encarnado, sempre que uma brisa se excedia por entre as frinchas; soprava amorosamente o pó que durante a noite se estendia, em manto, sobre o altar; deixava preces aos pés da Virgem, mais para que os seus santos ouvidos tivessem companhia, do que por ter o que pedir.
Júlio cumpria estes rituais todos os dias, ainda que na capela já não se ouvisse missa, ainda que todos os passos se tivessem alheado daquele lugar, ainda que já quase não restassem, na povoação, pernas para lá chegar. Nossa Senhora sempre escutara quem a ela recorria rogando por uma boa viagem e, talvez por isso, já todos tinham partido. Apenas Júlio permanecera, satisfeito com o pouco que tinha, ignorando que há muito mais a desejar, contentando-se em cumprir fiel e dedicadamente as obrigações de que nenhuma outra autoridade, senão a sua, o havia incumbido.