domingo, 27 de julho de 2008

História de amor com fim


Tinham sido dez horas de viagem para chegar a mim e, sentado a uma mesa do snack-bar imundo da rodoviária, ali estavas tu. Queria ter-te rodeado o corpo de braços e beijado os pêlos das barbas logo ali. Mas ainda não.
Saímos e levei-te ao trinta e seis da minha rua, cuja janela te vinha entreabrindo clique a clique. Uma vez aí, conferiste os espaços, conferiste-me as medidas e tomaste-me, reiterando desejos (lembras-te? Era uma toalha aos quadrados estendida sob os pinheiros, onde comeríamos a merenda e o corpo um do outro, um carro pago às prestações e um T2 com vistas para as traseiras de outros prédios, paredes-meias com outros casais, como nós, contentados com o seu viver).
Tal como acordado, foste pintando-me as paredes de criaturas marítimas. Durante esses dias, buscaste soluções para os meus inúmeros problemas, suportaste-me o cansaço e a tristeza instalada, encaraste-me os clientes, ocupaste-me a loja. De tintas e odores impregnaste o sítio. E um dia, em amorosa tarefa, rapaste a barba e descobri-te o queixo e nele concentrada toda a minha vontade de ti.
Chegou a festa à praça e bebemos cerveja no meio do povo que dançava conforme o modelo no palco. A seguir quisemos ir devorando lugares e aterrámos no exterior do palácio onde tivemos fome um do outro e, depois da carne, jantámos vegetariano num terraço em frente - sabe-me ainda a língua. Passámos pela casa da tua família, perdemo-nos no caminho, usando a boca para cantar e contar beijos.
Noutra altura fomos visitar paredes cobertas de tintas famosas, à beira Douro, vasculhar jardins encomendados e as ruínas fabris que ficavam vizinhas, caía já a noite. Fomos também, noutro dia, ao porto de Leça cheirar maresias, e lanchar em Serralves, onde diziam que se expunha arte. Duvidei mas ainda assim gostei, porque a companhia, sabes, era a tua. Comeste francesinhas e quis, por força, discutir contigo um qualquer estéril assunto teórico, de que não ficou lembrança. Apanhei-te as mãos com a câmara enquanto desenhavam, como é de seu hábito e necessidade. Como gostava de ficar a ver esse parto de imagens que te consumia - parecia-me que te via por dentro.
Durante todo o mês de Junho andámos pelas ruas do centro de Braga, deixando rastos de cheiros, como os bichos, reconhecíveis ainda hoje, ainda agora pungentes. Reflectimo-nos nas montras das lojas, como prova de existência conjunta, fotografámos a esmo, registando lugares, percursos, momentos, num álbum agora obsceno de caducidade.
Esgotado o mês, terminaste o trabalho por encomenda e regressaste à tua ponta do país, a retomar assuntos interrompidos. Interpuseram-se muitos dias e quilómetros entre nós e só já entrado Agosto voltaste.
Foi então que planeámos futuros nados-mortos. E tudo porque há anos se me havia rasgado o ventre de maculada concepção e o seu fruto crescia entre nós. Sim, pertence-me a descendência, pertence-me e possui-me, só quem não pariu não entende.
Naquele último dia não compreendeste porque é que me deixei ficar na varanda, à mercê dos poios esbranquiçados das pombas que me velam o telhado (apesar dos passos da gata, de que provavelmente desdenham). Fui eu, achaste tu, quem redesenhou o nosso porvir, quem o declarou inviável por excesso de maternidade. E partiste logo ali, sem remissão, sem possibilidade, desfazendo-te do fardo que era tecermos, boca-a-boca, horas próprias.
E agora rendem-se-me os braços, cansados como estão de procuras em vão. Ficaram para trás, apagados da areia pelas águas furiosas do mar, as pegadas mútuas que o entretanto tão absurdas tornou. Curou-se me o vício de questionar-me ao som de uma canção de Lenine e de resto, se queres saber, ficou o que de ti gostei.

7 de Maio de 2008