segunda-feira, 16 de abril de 2007

Bio-facsímile


Ela era uma Bio-facsímile de terceira geração. A sua cobertura, de silicone texturizado de alta definição, tinha todas as ramificações de uma pele de ente humano; o seu sistema coordenador central era de uma complexidade assombrosa; os terminais sensitivos eram extremamente apurados; os aparelhos locomotores eram de alta performance e a sua capacidade expressiva era impressionante, para uma criação de existência simulada.
Quando ele a viu na montra do seu terminal de conexão global, soube que tinha de tê-la. Nuno Vaz era um artista e, portanto, tinha uma existência underground, sempre iludindo as Autoridades do Desempenho Economicamente Relevante, ludibriando os fiscais dos Registos de Contribuição Social, apenas tolerantes para com os contribuintes da Gama de Excepção, como os Representantes das Organizações de Gestão dos Assuntos Públicos.
Sob um designativo pessoal falso, Nuno inscreveu-se para uma transacção de compensação equitativa da Bio-facsímile por tranches, fornecendo, para o efeito, um Número de Ubicação de Rendimentos forjado por contactos da Resistência Anárquico-Subversiva.
Recebeu, através de uma Companhia de Transportes Independente - as únicas que não mantêm um registo de localização de clientes - a primeira entrega da sua aquisição: um par de olhos num invólucro resistente a culturas parasitárias.
Nuno colocou os olhos numa pequena plataforma de transporte que trazia pendurada ao pescoço. Os órgãos da Bio-facsímile, embora isolados do resto da assemblagem, cumpriam todos os requisitos para os quais haviam sido desenhados. Dispunham de um sistema de transmissão de dados para o coordenador central da biofax (diminutivo de Bio-facsímile), o qual registava todas as percepções visuais dos órgãos oculares.
Os olhos da Biofax testemunhavam todos os instantes da vida do seu detentor, desde os mais íntimos e insignificantes, até aos passíveis de severa repreensão por parte das Autoridades Democraticamente Consentidas. Embora soubesse que isso constituía um risco grave, no seu interior, Nuno estava convencido de que nada tinha a temer por parte da sua Biofax.
Passado algum tempo, Nuno recebeu a segunda entrega, desta feita um set de dedos. Dado não ser ainda possível proceder à assemblagem do conjunto da Biofax, também os dedos vinham no mesmo tipo de invólucro dos olhos e, por conseguinte, Nuno não podia ter um contacto directo com os mesmos. Estes, contudo, registavam todas as impressões tácteis a que eram expostos, enviando-as, igualmente, para o coordenador central da Biofax. Os dedos seguiam todos os movimentos de Nuno e, durante a noite, repousavam sobre o seu peito, enquanto dormia. Com intervalos de tempo seguros entre as entregas, Nuno foi recebendo as várias partes constituintes da sua Biofax: os pés, os joelhos, o pescoço, as ancas, os ombros, as orelhas, as coxas, os braços, o nariz, as pernas, o peito, a cabeça e, por fim, a boca.

No dia da última entrega, Nuno não conseguiu dormir. Passou a noite sentado no meio do chão do armazém que acumulava as funções de habitação e atelier, olhando atentamente cada uma das fracções da Biofax. A partir do momento em que finalizasse a assemblagem, tudo mudaria, e ele, simultaneamente temia e ansiava por esse instante.
Aos primeiros sinais de iluminação exterior artificialmente gerada, Nuno levantou-se e iniciou o processo de assemblagem que lhe ocupou o dia inteiro. À noite, a Biofax estava, pela primeira vez desde que tinha sido submetida aos testes performativos e, posteriormente, remetida para as prateleiras do depósito de facsímiles idênticos a ela, pronta para funcionar em pleno.
Após alguns instantes em que permaneceu imóvel frente à Biofax, contemplando-a, Nuno aproximou-se de Bia (como apelidara a Biofax), colocou a mão direita por trás do seu pescoço e puxou-a suavemente para si. Era um espécime impressionantemente bem conseguido. Nuno sentia a textura e a temperatura de Bia em cada dedo da sua mão direita. Olhou fundo nos seus olhos e nada neles traía a sua origem cibótica. Olhou o nariz, levemente inclinado – a facsímile continha algumas imperfeições, para torná-la mais verosímil – a boca… Nuno não se atreveu, ainda não.
Aproximou o seu corpo do dela, lenta e inexoravelmente, sentiu as formas dela encostadas a si, um batimento ritmado proveniente do peito dela, o movimento da caixa torácica. Bia inclinou levemente a cabeça e Nuno roçou-lhe o pescoço com os lábios. A mão direita de Nuno descera já do pescoço e dobrara-se em concha, adoptando a forma do seio de Bia. O mamilo dela reagiu. A mão de Nuno continuou a sua descida pelo ventre, pelas ancas, até às nádegas. No regresso, a mão emaranhou-se delicadamente nos pêlos púbicos dela. Nuno perguntava-se se verificaria mais alguma reacção no corpo de Bia.
A distância a que estava do corpo dela – uns escassos centímetros – era-lhe já insuportável. Passou os braços por baixo das axilas dela e, com as mãos sobre as omoplatas, puxou-a para si, até sentir que já não havia mais distância. O seu sexo, ao contrário da boca, ainda relutante, estava pronto e decidido. Nuno penetrou-a e pôde verificar que a semelhança com os humanos se estendia ao íntimo de Bia. No último momento, teve medo de ejacular no seu interior e retirou-se. Bia tinha estado passiva mas cooperante. Dir-se-ia, paciente.

Não foi necessário, à BioFax, nenhum período de adaptação ao seu detentor, já que o tinha vindo a conhecer por meio de informações fragmentadas que o seu coordenador central sistematizara, formando um todo coerente, flexível, adaptável e mais preciso do que a consciência que Nuno tinha de si próprio.
À medida que Nuno se foi familiarizando com a presença de Bia, a lembrança de que ela era uma Bio-facsímile foi-se esbatendo, até quase desaparecer. A boca de Nuno conhecia já todos os recantos da dela e a única coisa que distinguia a sua relação sexual com Bia da de uma mulher era que aquela se revelava cada vez mais plena. Aliás, toda a interacção com a Biofax se revelava satisfatória para além de todas as suas expectativas. Bia conhecia o trabalho de Nuno, compreendia-o melhor que ninguém, apoiava-o, assistia-o, criticava-o, inspirava-o, enriquecia-o. A nível pessoal, Bia supria todas as necessidades do seu possuidor.

Tinham decorrido cerca de dois meses desde o dia da assemblagem da Biofax, quando Nuno se apercebeu, de súbito, de que tinha deixado progressivamente de trabalhar e de que passava todo o seu tempo perto do corpo de Bia, numa distância cada vez mais ínfima, quase imperceptível. Nuno deu-se então conta de que se tinha vindo a instalar no seu íntimo um desconforto relativamente a Bia e, a partir daí, esforçou-se por descobrir a razão, aparentemente despropositada, desse sentimento.
Bia era tudo o que Nuno sempre sonhara e muito mais. Não havia nenhum aspecto da sua vida que não tivesse sido melhorado pela simples presença da Biofax, que adivinhava a sua mais insignificante necessidade, vontade ou simples capricho, ao ponto de já não restar nenhuma necessidade que não tivesse sido suprida, nenhuma vontade incumprida, nenhum capricho insatisfeito. Nada por preencher, satisfação total.
Com a desculpa de uma sobrecarga nos níveis de energia consumidos, Nuno explicou a Bia que teria de desmontá-la, temporariamente. Solícita como sempre, Bia assentiu. Nuno devolveu cada fracção da Bio-facsímile ao seu invólucro protector, revivendo as memórias que lhes estavam associadas. Com gratidão, mas sem pena, Nuno regressou à sua existência solitária, insatisfeita mas repleta de desejos.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Josefa

A Josefa, de rolos eternos na cabeça, bata às flores miudinhas, armações quadradas, de massa castanha, a suster umas lentes que lhe apequenam os olhos, chinelos orlados de um pêlo gasto, como de um rato tinhoso, mãos desbotadas pela lixívia e língua condimentada pela inveja, a Josefa, não se priva de espreitar-me por cima do ombro quando me sento ao computador, com ar de quem não diz, mas pensa “Lá está esta outra vez no ‘tequeleteque’! Deve achar que sabe escrever, a ‘dotôra’! Olhem-me p’ra isto! Pff!”.
E eu, encolho-me, para que os seus olhos mesquinhos possam atentar melhor no desastre que ocorre no monitor, que ela apenas pressente, pois não lê uma única letra, para que confirme o que já sabe, sobranceira, do alto dos seus chinelos puídos, para que o seu juízo dite o meu silêncio, de uma vez por todas.
Mas a Josefa disfarça, quando a encaro, rogando que desfira o golpe de misericórdia, que ponha a nu a minha torpe falta de talento, poupando ao mundo mais outro texto sem sabor. Ela disfarça e varre o chão com mais afinco, repara, subitamente, numa mancha que ali vê, mais por fé do que por acuidade de visão, raspa-a com a ponta da unha e sai.
Sai, deixando-me a sós com o monitor salpicado de bichos negros e incompreensíveis, que o analfabetismo da Josefa parece que se pega, e, sem me apoquentar com o que lá possa estar escrito, colo o dedo na tecla delete, desligo o computador e vou passajar as meias (sempre com fome de remendos) endireito os óculos, ajeito a bata, ponho um rolo que tinha descaído no sítio, escondo a alça do sutiã, teimosa e exibicionista, e deixo-me de ‘tequeleteques’.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Zorra (pião grande)

Toninho chegou à escola exibindo entre as bochechas o maior sorriso que a sua cara já lhe tinha conhecido.
Passou pelo grupo do Zé Grilo, debruçado sobre os berlindes, sem ficar embasbacado a olhar, como era seu costume. Encostou-se à parede da escola, sem tirar o sorriso da cara nem as mãos dos bolsos.
Passado um bom bocado, o Quim, intrigado com a pose, aproximou-se do Toninho. Encostou-se também à parede, sem dizer palavra e sem tirar os olhos dos bolsos do sorridente colega. Toninho conseguiu ainda chamar a atenção de mais um ou outro rapaz. Quando achou que já tinha público suficiente, retirou finalmente as mãos dos bolsos, trazendo na direita, o maior pião que alguém já vira nas redondezas!

Corno

O Alfredo era um tipo que cuidava o visual: camisa aberta para deixar respirar o pelame, cabelos sob o controle da brilhantina, Old Spice a rodos pelo corpo todo, bigode sempre abaixo da linha inferior da boca e, a sua imagem de marca, cordão de ouro com um grande corno dependurado.
Quando passava em frente ao Café Sporting, inchava o peito aos comentários de "Ali vai o maior corno do bairro!", que Alfredo atribuía ao pendente oferecido pela mulher. O palerma, nunca percebeu que a prenda a que todos se referiam, era outra.

- Anda Tó, anda!
O Tó avançava menos do que o que recuava. Podia perceber os preparativos em volta: tábuas corridas a servir de mesas, broas a cozer no forno, malgas dispostas em fila, prontas para receber o vinho, queijos de intenso odor, tudo isto num vaivém de saias, que às mulheres é que tocavam estas tarefas. Os homens dispunham-se a outras actividades, nas quais o Tó preferiria não ter participação.
- Vá que se faz tarde!
O Tó não se ralava nada em atrasar os planos, cada minuto conseguido era-lhe precioso. Mas quando os homens uniram forças, agarrando-o pelo pescoço, pelo corpo, pelos membros, enfim, onde calhava, ele compreendeu que já não poderia adiar mais o momento a que com todas as suas forças se esquivara. Chegado a onde os outros o queriam, já só teve tempo de ver, erguido no ar, o cutelo fatal. Ia haver chouriça!

Equus

Álvaro tinha dois cavalos: um, que ele montava, e outro, que seguia ao lado, a passos equestres executados pela metade, dada a sua condição bípede.
O cavaleiro regozijava-se em testar os limites de ambos animais - o relinchante e o falante. Saltava por cima do silvedo, passava por lamaçais, mesmo que o seu destino não o justificasse, com o único propósito de proporcionar-se o espectáculo da nobreza equídea e da miséria humana, à qual, do alto da sua montada, escapava. Nem no leito as duas criaturas de sua pertença se distinguiam, uma vez que ambos repousavam dos esforços diurnos sobre camadas de palha. Mas, apesar de tudo, só uma coisa invejava o lacaio ao seu congénere: ter quem tão diligentemente lhe afagasse o pêlo.

O Melga

B. Melgaço era um melga. Quando apanhava uma mulher distraída, colava-se-lhe todo, tornando impossível ignorar o seu mau hálito e o cheiro desprendido das permanentes auréolas de suor nos sovacos.
Aquele hábito nojento de sorver o próprio cuspo no fim de cada frase, afastava até os mais intrépidos ouvidos. Depois eram também as banhas a espreitarem por entre as aberturas da camisa segura no limite dos botões, os cabelos sebosos puxados de orelha a orelha e, a rematar, a unha do dedo mindinho sempre comprida, a causar náuseas só de imaginar-lhe os usos. Não admira, pois, que aos quarenta e um anos ainda não tivesse provado carinhos de fêmea.
Os tostões que poupara na sua higiene, valeram-lhe um razoável pé de meia e, na véspera do seu quadragésimo segundo aniversário, o melga estava disposto a fazer render os seus cobres.
Tinha pegado em todo o seu dinheiro e dividira-o em setenta montes de notas de 20 euros. Setenta, porque as letras do alfabeto são 23 e o pudor do melga não lhe permitiu manter o resultado da sua multiplicação por três.
Depois, percorreu a lista telefónica em busca de setenta nomes femininos. Anotou-os a todos numa folha de papel e começou a ligar para cada um deles.
Propunha a cada mulher com quem falava o envio de um gordo maço de notas em troca de uma noite nos seus lençóis.
Das setenta mulheres a quem ligou, de nenhuma obteve uma resposta inequivocamente afirmativa, mas Melgaço tinha fé nos seus santos ‘euricos’.
Refastelou-se no maple e ligou a televisão no canal que lhe servia de consolo para as noites sem companhia. Perante a perspectiva de poder ter uma mulher aquela noite, começou a ficar entusiasmado com as imagens do ecrã.
Impaciente, não foi capaz de guardar a satisfação para mais tarde, mas a gordura que lhe minava o coração, boicotou-lhe o prazer, e Bruno Melgaço não passou da meia-noite.
No marco de correio em frente de casa, setenta envelopes selados esperavam a chegada aos seus destinos.

António

António Balazar tinha entre pernas uma caprichosa peculiaridade: a dita só ficava dura quando o seu orgulhoso possuidor ditava ordens idem. Era vê-lo a juntar o povo em estádios, segundo uma criteriosa escolha que, no fundo, era aleatória, a bloquear as saídas com militares blindados e a exercitar polegares, qual imperador romano, com forte pendor gravítico que, quase invariavelmente, selavam o destino dos pobres coitados que outro mal não fizeram senão errar no país de nascimento.
Os arguidos (com esta designação dissimulava ele o fim certo que esperava os desgraçados), deviam superar uma série de absurdas provas, mostrando os seus talentos para manterem-se vivos, pelo menos até uma próxima convocação.
Balazar, de um patriotismo pimba, apreciava sobretudo o kitsh, o belo-horrível. Corpos disformes em strip-teases de mau gosto, mudos a cantar o fado, pernetas a dançar o fandango. Quando aparecia um número particularmente horrendo, o chefe da nação comentava entre dentes “Aqui há talento!” e o seu entre pernas ressuscitava, reclamando a presença do operador do milagre nos seus aposentos, instalados por baixo das bancadas, que o momento não era de desperdiçar nenhum minuto. Caso o milagreiro, macho, fêmea, novo, velho, humano ou bicho, fosse capaz de repetir a proeza, podia contar com mais algum tempo de vida, embora não fosse claro que isso constituísse uma verdadeira vantagem.
Quanto aos restantes assuntos da nação, era simples: os assuntos externos, não tinham, pura e simplesmente, existência - era um país orgulhosamente só; os assuntos internos, não ultrapassavam o âmbito das virilhas do ditador.
E que não cause admiração o facto de Balazar se manter no poder. Afinal, já outros ditadores antes dele, haviam sido considerados pelo povo, em circunstâncias de absoluta e livre democracia, como um dos dez Grandes do País.

"Rica em Sonhos"

Noémia cantarolava o genérico da Floribella enquanto rabiscava, no verso de uma conta de supermercado, a lista das coisas que era preciso comprar (não tenho nada…). Abre as portas do armário da cozinha, pára para pôr mais comida ao gato, espreita a lingerie que a vizinha do 2º direito está a estender e retoma a tarefa.
“Ui, já se me acabou o 'espaguete'! Da maneira como se come nesta casa, mais vale trazer logo 3 pacotes!... (… sou ric’em sonhos…)”.
Numa caligrafia que em nada melhorou desde que terminou a quarta classe, aponta os 3 pacotes de esparguete no pedaço de papel . Liga o rádio, sempre sintonizado na Renascença e abana as ancas ao som da música que continua a trautear mentalmente.
“(…mas tenho, tenho tudo…) 'Féri' p’á loiça… palha d’aço… 'dabliucê' pato… dos produtos da limpeza acho que não preciso mai’ nada.”.
Noémia tira os óculos que, ultimamente, lhe fazem muito calor na cara. Aliás, ultimamente, parece que tudo lhe faz calor, apesar de estar em Janeiro.
“Ai, credo!”.
Senta-se no banco a abanar-se com o parco papel. Quando lhe passam os calores, volta a olhar para o armário da cozinha, em busca de mais mercearia em falta.
“Arroz ‘inda tenho… farinha tam’ém… 'espaguete'… Mau!... Mas eu não apontei o espaguete?... Sim! Ai, esta minha cabeça!... Espaguete não é preciso, tenho 3 pacotes (…não tenho nada, mas tenho, tenho tudo…)”.
Abre o frigorífico e passa o interior em revista.
“A Becel p’ó costerol: 2 pacotes; os iogurtes de 'Alô' Vera: aí… 2 embalagens; Limiano: 1 bola (…mas tenho, tenho…); as verduras… compro no mercado, na banca da Saõzinha, são mais fresquinhas…”.
Ainda não tinha fechado completamente a porta do frigorífico quando voltou a abri-la.
“Vou comer o iogurte que ‘tá ali, antes que acabe o prazo. Ai, não pode ser! ‘Inda agora só aqui havia um iogurte e agora estão cá 2 embalagens!... E o Limiano… a Becel! Que carago! Ou eu estou doida ou aqui há dedo do demo!”.
Noémia benzeu-se, beijando os dedos no fim.
“Valha-me S. Bentinho da Porta Aberta! Tudo o que ponho no papel aparece-me aqui!”.
Desta vez os calores atingem-na de tal forma que a Noémia tem de desapertar alguns botões da bata e ir para a varanda, receber o ar fresco da manhã. Permanece lá até lhe passarem os calores e descobrir uma maneira de tirar aquilo tudo a limpo.
“Ah, mas eu hei’descobrir o que ‘tá-se aqui a passar! Ou não me chamo Noémia da Encarnação! Hei-de, hei-de! Quando a Magda armou aquela tramóia à coitadinha da Floribella por causa do Federico Fritessevalem, quem é que deu logo por ela, quem foi? A Noémia! Até mandei uma carta p’a Carnaxide à’visar a pobre coitada!”.
Empunhando o coto do lápis como se fosse uma arma, Noémia começa a anotar, no que sobra de papel, todos os itens de supermercado que lhe vêem à cabeça. Deixando-se levar pela volúpia do acto, atafulha o papel com os seus escritos infantis. Ainda suada do esforço que supôs aquela batalha pelo verbo, abre todas as portas de par em par e constata, entre incrédula e inebriada, que, não só estão lá todas as coisas que apontou, como se encontram nas quantidades certas!
Cai, com os joelhos que as mini meias deixam a descoberto, na tijoleira da cozinha, elevando os braços celulíticos em direcção à lâmpada fluorescente.
“Milagre!”
Lágrimas de contentamento saltam-lhe, em esguichos, dos olhos sapudos.
“As coisas que eu escrevo aparecem!”
Noémia, que não passou da quarta classe, nunca antes tinha suspeitado terem os riscos sobre o papel semelhante poder.
“Será que é só com a lista das compras?”
Com esta pergunta a forçar-lhe o ar em borbotões goelas adentro, decide testar os limites (ou a infinidade) do seu poder. Lembrando-se do santo António que o gato da vizinha do lado lhe tinha partido, quando uma vez que lhe entrou em casa, à socapa, pela janela da marquise, escreveu devotamente nas páginas centrais da TV Guia: imagem do Santo Antoninho com o Menino Jesus nos braços. Olhou, temorosa, para cima do frigorífico, no espaço entre o galo de Barcelos e a chaminé de Tavira. Lá estava o santo, com o seu hábito castanho, segurando um bebé de um tamanho desproporcionadamente grande. Noémia acreditou ter sido banhada pela graça divina!
Era preciso que usasse o seu dom em algo realmente importante, um gesto grandioso que os véus do olvido jamais cobrissem. Abre novamente a TV Guia, nas páginas com o resumo das novelas e, num estado de gloriosa ventura, reescreve o final da Floribella.

Ressaca

Três da manhã. As rabanadas tinham-lhe caído mal. O brandy, o irish e a ginjinha não ajudaram. Cambaleia até à casa de banho e mal tem tempo de chegar à sanita para expulsar tudo o que não traz agarrado às entranhas.
Da casa de banho, segue para a cozinha. Água das Pedras a rodos pela goela abaixo. Melhor.
Na peregrinação pela casa, toca a vez ao escritório, o local do seu calvário. Senta-se em frente ao computador mudo e negro. Liga-o. Quer vomitar palavras azedas no monitor. Bater em cada tecla, em cada inicial dos nomes que detesta até à náusea. Enche páginas de ágrio desdém até se sentir aliviado. Arrota.
No tecto que os seus olhos fitam, começa a desenhar-se a silhueta que se lhe tinha esparramado na vista na noite anterior. As pernas da cunhada. O rabo da cunhada. O decote da cunhada. Através do decote, as mamas da cunhada.
Os dedos agora gulosos, babam, trémulos, toda a extensão do teclado. No disco duro, um tropel de infantilidades de cariz porno-sentimental.
Recosta-se na cadeira e fecha os olhos, abrindo descaradamente a imaginação. “E se tivesse o poder de fazer acontecer o que desejo? E se os acontecimentos tivessem lugar ao mesmo tempo que os escrevo?”. Com as hormonas a latejarem-lhe em todos os pontos sensíveis, começa, desvairadamente, a desenhar no portátil o mapa dos seus desejos.
Inicia no momento em que a cunhada se debruçou sobre ele para servir-se de mais bacalhau com grelos e ele lhe sentiu o cheiro a suor misturado com o perfume. Faz com que ela se sirva de uma dose extra, gozando o odor de cada um dos seus poros. Enche-lhe mais vezes o copo de vinho, para fazê-la esvaziá-lo em seguida. Aproveita para encher também o copo da irmã da cunhada, porque sabe que ela não aguenta o álcool. Atolada em tinto, a mulher não consegue dar nem mais um passo e tem de ficar a passar a noite em casa dos pais. A cunhada tem mais resistência e pode levá-la a casa. Entra. Entra no apartamento, entra na sala, entra no quarto, entra na cama, entra na cunhada.
Sai do escritório directamente para a casa de banho, agarrando o meio das pernas. Abafa a custo um prazenteiro “aaahh!”. Lava as mãos, apaga a luz e deita-se escrupulosamente do seu lado da cama.

Não sabe quantas horas dormiu. A mulher já se levantou. Tenta erguer-se, mas não consegue. Tenta alcançar o relógio para ver as horas, mas o seu esforço é em vão. Verifica, petrificado, que o controlo sobre o seu corpo se encontra circunscrito à sua cabeça. Daí para baixo é tudo um bando de membros insurrectos. Aperta os olhos com força. Fica assim uns bons momentos. Abre-os. Nova tentativa de movimento - gorada. “Porra!”.
Sente o suor frio que lhe brota das raízes dos cabelos. O tempo passa, zombeteiro, sem que nada aconteça.

“Estás acordado?”. Sem esperar pela resposta óbvia, a mulher atira nova pergunta, no mesmo tom distraído: “Queres alguma coisa?”. “Quero!”, grunhe ele, desesperado, “Quero sair daqui!”. “Ah!...”, é a lacónica resposta dela.
A mulher continua no seu vai-vem pelo quarto. Abre e fecha portas. Abre e fecha gavetas. Anda. Pára. Volta a andar. Mexe-se, desenvolta. O homem não aguenta mais. Grita! Uiva! Urra!
“Queres que te leia alguma coisa?”. O homem não consegue identificar a emoção que espreita por trás destas palavras. A mulher sai do quarto por um minuto e retorna com o portátil dele na mão. “Queres ouvir?”. Sem esperar pela resposta do homem, ela começa a ler.
…no momento em que a irmã se debruçou sobre ele para se servir de mais bacalhau com grelos, sentiu-lhe o cheiro a suor misturado com o perfume. Fez com que ela se servisse de uma dose extra, gozando o odor de cada um dos seus poros. Encheu-lhe mais vezes o copo de vinho, para fazê-la esvaziá-lo em seguida, porque sabia que ela não aguentava o álcool.
O homem reconhece vagamente o texto, mas há qualquer coisa que não está bem… A mulher continua.
Ela ajuda a irmã a deitar-se no sofá, é impossível ir mais longe. Tapa-a com uma manta. Despede-se dos pais e sai com o homem. Sentado ao volante, com as veias encharcadas em álcool, o homem não controla o carro. Despistam-se. Embatem num muro. Ela perde os sentidos. Quando volta a si, olha para o homem que não se mexe. Uma ambulância leva-o. No hospital, dizem-lhe que o homem está tetraplégico.
“Claro que ainda não acabei...”, diz ela.

Marli

Marli olha-se no espelho: os papos a amparar-lhe a queda do olhar, as linhas que divergem a partir dos cantos dos olhos, caminhos que levam a lado nenhum, a pele a amarelecer como um papel antigo, a linha dos lábios cada vez mais dura e cerrada, os pêlos a ensombrarem-lhe o rosto... trinta e oito anos. Continua: as mamas apontando o umbigo, a barriga gretada de ter albergado mais-um-no-mundo, a textura carregada de concavidades da sua pele…
Marli olha para lá do espelho. E não vê nada.
A trintona – é esse o seu estatuto – cobre com peças de roupa o corpo que transporta (há quanto tempo?) pela vida e com maquilhagem a cara que tem de apresentar lá fora. Sai.
Os sons da rua a introduzirem-se-lhe ouvidos acima e as silhuetas habitadas com que se cruza, quase conseguem dar-lhe a impressão de que participa na azáfama do quotidiano. Olha, indiferente, as montras iluminadas a berrarem “Feliz Natal”, tentando perceber qual é, exactamente, o sentimento que esta altura do ano invoca – se o alívio por não se ver arrastada pela furiosa demanda do presente certo, se o vazio por não ter ninguém a quem dá-lo.
Na paragem do autocarro, aguarda a viagem de todos os dias até a um minúsculo escritório num bloco de apartamentos dos anos setenta, no centro da cidade, onde passa seis horas seguidas a fingir orgasmos por telefone.
Hoje tem clientes como cães – a pressão da quadra não perdoa. Para além dos habituais que invariavelmente pedem o mesmo, recebe a chamada de um cliente novo. Mais para passar o tempo do que por curiosidade, mete conversa com ele. Casado há pouco tempo e com um filho a caminho, o homem quer ouvir por telefone os gemidos que já não ecoam em casa. Conta que nasceu na casa de banho de uma área de serviço da A1 e que o seu primeiro enxoval foi uma manta de papel higiénico. Diz que na irónica data de 25 de Dezembro faz vinte e dois anos que o entregaram à guarda de uma instituição social, de onde só saiu, por seus próprios meios, aos catorze.
Esgotadas as confissões, o homem reclama por aquilo ao que ligou. Marli, a quem saem mecanicamente os gemidos conforme a encomenda, não emite o mais mínimo som. No dia de Natal faz vinte e dois anos que numa viagem entre Lisboa e Porto parou numa área de serviço.

Alberta

Flap, flap, flap, flap, flap.” Aquele som, simultaneamente irritante e excitante, fazia-a ranger os dentes. Imaginava-se a ultrapassar todas as limitações, contra as quais não podia lutar e gozava, de olhar alheado, a cena que nunca iria ter lugar.
Aquele pescoço longo, aquele mover de cabeça gracioso, o delicado andar… Aquele espectáculo que parecia montado para si, provocante, desafiador… Todos os dias se submetia, exaltada e impotente, ao desfile da graciosa criatura que mesmo durante o seu sono continuava a exibir-se, incólume, soberba, inalcançável.
Começou a perder o apetite, a passar o tempo em vigília, a desinteressar-se de tudo o que não fosse a contemplação daquela que tão febrilmente desejava. Os olhos encheram-se-lhe de um brilho delirante e passado pouco tempo, nada mais os habitava senão o reflexo da sua obsessão. Era feliz nesta infelicidade.
Um dia, porém, o que até então parecera completamente impossível, aconteceu. Alberta nem conseguia acreditar no que os seus olhos lhe diziam! A porta, a mesma que durante dias a fio tinha estado sistematicamente fechada, estava a ser aberta, precisamente por quem lhe tinha impedido o encontro com o seu destino.
As mãos tremiam-me enquanto segurava no puxador da porta, consciente, mas não segura do que estava a fazer, do que iria, certamente, acontecer. Repeti, para dissipar-lhe as dúvidas – Alberta, sai… podes ir – e engoli em seco.
Hesitante e incrédula primeiro, entusiasmada depois, Alberta atravessou a ombreira da porta e parou do lado de lá, enchendo o peito de ar livre e coragem. Tinha chegado a hora por que tanto ansiara e temera. A sua desejada não tinha chegado ainda e restavam por isso a Alberta mais alguns minutos de paciente espera.
Flap, flap, flap, flap, flap.” Pela primeira vez, Alberta estava verdadeiramente feliz por ouvir aquele som. Semicerrou os olhos para olhar a fonte do som que vinha na sua direcção, com o sol a brilhar por trás. Sem deixar de fitar a etérea criatura, avançou sem pressa, quase imperceptivelmente, na sua direcção. Quando já estava estonteantemente perto, Alberta franqueou a distância de um salto, cravando os dentes no pescoço da pomba e caindo da varanda abaixo no impulso. Eu, não me movi, já não era o primeiro gato que perdia desta maneira.