domingo, 26 de abril de 2009

Flores de papel no meu jardim

Ela estava grávida. Trazia no ventre um fruto a formar-se, mas ainda por nascer.

Naquele dia, levou uma cassette para o Jardim-Escola. Pô-la a tocar e disse às crianças que se levantassem.

Porque a hora chegara, depois de muitos e muitos anos, para lá do longe, ela, grávida, trouxe uma cassette. E na sala do Jardim-Escola, a única onde havia rapazes, a música ouviu-se.

As crianças tinham-se levantado, por instrução da mulher grávida. Não mais estariam paradas, acompanhariam com os seus passos a música que havia soado lá longe e que estava a chegar, tinha chegado já. Os passos de um exército de crianças soaram nas tábuas do Jardim-Escola, ao ritmo da canção.

Começaram os preparativos, há muito iniciados fora das paredes do Colégio, mas só então, só depois daquele dia lá longe, ao som de uma canção, possíveis entre aquelas paredes.

Do papel de crepe verde e vermelho moldado pelas pequenas mãos das crianças, nasceram flores e foram postas em cestos. Corolas e pétalas cingidas aos corpos infantis, inundaram o Jardim-Escola.

E as crianças saíram à rua e de cesto no braço ofereceram cravos. Porque lá longe já era Abril.

sábado, 7 de março de 2009

Plácidos dias

O senhor Plácido Dias todas as manhãs despertava às sete e trinta e cinco.

Levantava-se da cama, enfiava o roupão e os chinelos e metia-se na casa de banho, onde tratava das necessidades fisiológicas mais urgentes, tomava banho e se barbeava.

Depois de vestir-se e fazer a cama, ia à rua comprar o jornal e o pão.

Voltava para casa e preparava uma chávena de café com leite, uma sandes de fiambre e um sumo de laranja, o seu pequeno-almoço de todos os dias. Enquanto comia, percorria o jornal de uma ponta à outra.

Findas a leitura e a refeição, dobrava o jornal, lavava a pouca loiça que tinha sujado e ia até ao quarto.

Uma vez no quarto, descalçava-se, despia-se, arrumava a roupa, punha o pijama e, depois de lavar os dentes e pôr o despertador nas sete e trinta e cinco, deitava-se e dormia.

Levava já sessenta anos desta vida regrada.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Life of an unnoticed screw

Era um dia quente do princípio de agosto. No terraço, expunha-me ao sol e à brisa salgada vinda do mar, ali onde desagua o Tejo. Sentia-me bem naquela cadeira de lona, onde sempre estava.
O barbeiro Manuel Marques esperava a sua vez, enquanto o calista Hilário preparava as ferramentas do ofício. Era dia de higiene pessoal lá no Forte. Quando trabalhava o calista, a cadeira de lona rangia estoicamente, mas chegada a vez do barbeiro, sentia-se a preguiça distribuida por toda a cadeira. Era assim.
Naquele dia, António estava distraído, com assuntos sem dúvida importantes. Atirou-se pesadamente para a cadeira de lona e esta, não resistindo ao ímpeto, cedeu. O corpo de António embateu nas lages do terraço. Ouviu-se uma pancada quando a cabeça mediu durezas com a pedra. Inútil querela, já se sabe, nada vence o granito. Barbeiro, calista e demais presentes acorreram a ajudar António, que recuperou a pose digna, tão rápida e convincentemente quanto lho permitiram as dores no corpo. Recusou terminantemente ver um médico, julgando a sua saúde, tal como o seu poder, acima de qualquer revés. Levaram-no para dentro e a cadeira lá ficou esparramada no chão.
Eu estava livre. Talvez tenha ajudado à minha libertação a folga que me haviam dado durante a noite. Fora um vulto negro armado de uma chave de fendas. Chegara-se à cadeira e escolhera-me a mim para ser aliviado da pressão. Por isso no dia seguinte, isentado dos habituais deveres de fixação, fiz cair a cadeira e António sentado nela.
Sim, fui eu. António nunca mais foi o mesmo e, pouco a pouco, outras cadeiras foram caindo, deitando por terra governantes. O último foi Marcelo, obrigado a deixar a sua por homens armados, num dia de abril.