domingo, 25 de março de 2007

(As coisas que se escrevem a altas horas da madrugada)

Num reino mesmo aqui ao lado, onde o rei se sentava no trono e quem governava era outro, vivia uma princesa velha, gorda e feia. Apesar de ser muito velha, feia e gorda, a princesa tinha uma coisa boa - não era especialmente inteligente e era incapaz de manter uma conversa.
Como sempre ouvira dizer que as princesas devem ser casadoiras, também esta tratou de encontrar marido. O seu pai, ciente das características da filha, aconselhou-lhe um golpe de marketing: ao príncipe que passasse uma noite com ela, deveria oferecer uma segunda noite grátis.
Persuadidos pela oferta, não tardaram em surgir príncipes dispostos a experimentar os lençóis da herdeira do trono, no sentido literal, já que o trono era tudo quanto o rei possuia. Deitavam-se ao lado da princesa, concentrados no sangue que lhe corria nas veias, como forma de esquecer-lhe o corpo, mas depois que a tocavam, não ficavam.
E assim foram desfilando pelo leito principesco todos os pretendentes de que havia notícia, mas todos, sem excepção, sucumbiam ao tocar o corpo da real criatura. Até que um dia veio um príncipe que não se arrepiou com o contacto da princesa muito velha, feia e gorda. Permaneceu nos seus lençóis, depois de cumpridos os rituais acasalatórios, toda a noite. E, no dia seguinte, também não ficou.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Foto: hand, originally uploaded by djamesm

António fechava a mão, abria-a, e olhava-a, talvez na esperança de que o que lhe tinham dito que estava escrito nas linhas da palma da mão se baralhasse, oferecendo-lhe outro destino, mas as dobras que trazia já desde a barriga da mãe, não se alteravam. Considerava-se céptico em relação a todas essas patranhas das bruxas, dos feitiços e das sinas, mas o encontro com aquela mulher tinha abalado profundamente as suas convicções. Visto que a ela não lhe eram estranhos os mais íntimos pormenores do seu passado, porque haveria de escapar-lhe o seu futuro?

Já há mais de uma hora que a mulher o tinha deixado entregue às revelações que lhe fizera, ali, naquela esplanada de uma praça espanhola, onde crianças corriam atrás das pombas, jovens com as cabeças cheias de rastas se reuniam em volta de um batuque monótono e reformados gastavam as horas que todos os dias lhes sobejavam.

António fixava a palma da mão, completamente analfabeto em relação aos seus mistérios, com um nó na garganta, um aperto nas têmporas e o estômago em desbaratinada revolução. Como podia ser, como? Como poderia ele fazer a monstruosidade que a sua mão adivinhara antes mesmo daquela se lhe ter insinuado na vontade? Tinha feito centenas de kilómetros até chegar a Madrid, como um sonâmbulo, guiado não sabia por que instinto. Sim, isso era verdade. Tinha guardado na mala do carro a espingarda de que se munia nas suas caçadas, isso também era certo. E não havia dúvida de que se sentara na esplanada em frente ao hotel onde se tinha hospedado a sua mulher com uma companhia que não a sua. Mas como poderia ele levar a cabo o acto que prognosticara aquela mulher?

Convencido de que a sua mão lhe ditava o destino, António decidiu tomar o futuro em suas próprias mãos. Acabou a cerveja, entretanto morna, partiu a garrafa na beira da mesa de ferro e, com o bocado que segurava na mão direita, interrompeu as linhas da esquerda. Deixou dinheiro para a cerveja e para a gorjeta ao pé do copo, levantou-se, mergulhou a mão na fonte da praça durante uns minutos, tingindo a água de vermelho e, atando o lenço em volta, meteu-se no carro rumo a casa, feliz por recuperar o cepticismo com que sempre encarara as videntes.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Amor virtual


Foto: Things and Apperitions, originally uploaded by crescentsi

Antes de deitar-se, tal como o facilitador de desinquietamento espiritual lhe aconselhara, desabotoava a camisa e introduzia o cabo UC na ranhura por baixo das costelas, descarregando para os circuitos de comunicação partilhada tudo o que acumulara durante o dia, ao abrigo de um avatar incaracterístico e de um alias vulgar. Dormia, depois, um sono sem sonhos, confortado pelo esvaziamento experiencial que efectuara e por se crer no anonimato.

Na central de processamento de experiências vivenciais, no entanto, há muito que alguém seguia as suas descargas diárias, cativada pela sua impressionante humanidade. Mesmo sem possuir dados factuais, tais como o substantivo designativo pessoal ou a data de accionamento, ela conhecia-o intimamente e nutria por ele um sentimento que, se não estava em erro, se designara, em tempos, por "amor". Entregava-se à nostalgia daquele sentimento vintage e, em vez de enviar as entradas dele para o centro de ablução de descargas espirituais, encriptava-as e armazenava-as no seu nano-chip.

Com o passar do tempo, ela começou a ver-se na necessidade de apagar alguns dos seus próprios dados, para que o acesso e respectiva desencriptação das entradas dele, se efectuasse instantaneamente; ninguém teria paciência para aguardar a centésima de segundo que demorava o processo, se assim não fosse. A certa altura, os dados dela começaram a ser insuficientes e a entrar em conflito com as entradas armazenadas. Ela, incapaz já de passar sem as descargas dele, não hesitou em resolver as falhas, com o sacrifício de todos os seus dados. O seu chip interno, livre de contradições, pode deduzir então, inteligentemente, os dados de que necessitava para compor a pessoalidade das entradas que possuia: transcreveu-se, assim, a pessoalidade do amado para a do sujeito amador.