sexta-feira, 25 de maio de 2007

O merceeiro

A mina do lápis vermelho espreita a custo por entre a madeira. Antes, ele havia cravado a lâmina do canivete na fibra vegetal, morta para servir. Molha a ponta na ponta da língua. Escreve, arrastando pelo papel um fio de cuspo, uma linha de baba.
Escreve devagar, está mais habituado aos números. Primeiro a data, como se fosse preciso. Depois...
Depois o nome. Firme. A mão grossa retesando-se em redor do instrumento da escrita, subindo letra acima, descendo letra abaixo. O nome.
Antes saía-lhe melífluo pelos lábios, como compota de frutos silvestres. Agora, o bico do lápis asperizando as letras na imensidão do papel.
Geógrafo no seu mapa privado, traça a linha da fronteira entre o lado de cá e o de lá. Usa mais força do que a que é preciso. Fica a marca em todas as folhas que irão seguir-se.
Esgotado, o bico do lápis tem de ser retirado do pau a golpes de canivete. Corta-se.
Calha bem. Agora é preciso que escreva a vermelho, encabeçar territórios. Dever e Haver.
Na coluna do Dever, o nome dela. Na coluna do Haver, nada.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Olhando para trás (a partir do quadro homónimo da Paula Rego)

A culpa era dela, ela nas várias idades. Dos seios dela, que se amontoavam sobre as costelas, das ancas dela, que se arredondavam, da sua condição de "cortada ao meio".
Aquele corte... era preciso que fosse rasgado, numa empreitada. Mas que não sentisse prazer. O prazer era uma coisa obscena.
O gozar do corpo dela, isso era uma coisa justa, pois que estava ali. E ele podia tomá-lo.
Encavalitava-se na cama para pegar no cão, sem o mínimo cuidado em ocultar as coxas, o rabo por cima delas, as costas por onde seguia a sua fisicalidade. Essa desocultação tinha de ser punida, punida e aproveitada.
Ele trataria disso. Tinha tudo o que era preciso. Tinha, inclusive, a consciência a jeito para limpar-se no fim.
Seguia, sem escrúpulos, os seus desígnios coxas adentro, garganta abaixo. Ela que engolisse, ela que o engolisse. Nada mais apropriado para uma boca do que dentes de leite.
Ah, a nívea oblação sobre o altar tenro daquele corpo! A viril oferenda ao deus decrépito que com certeza venerava!
Estupor!
Estupro!

Olhando para trás, a culpa era toda dela, ela nas várias pequenas idades.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Os Pais do Mané

Augusto Manuel, homem apreciador das coisas boas da vida, que para ele eram um bom copo e um bom rabo, olhava com desgosto o seu filho mais velho, Eduardo Mané. O rapaz, desde que vira um bailado na dois, andava-lhe aos rodopios saltitantes pela casa.
Guto, como era familiarmente conhecido, para tentar inverter os estragos, arrastara o rapaz por tascas, onde vozes roufenhas cantavam fados malandros, enchendo-lhe generosamente o copo e fisgando, pelo canto do olho, a fêmea de serviço encostada à parede em frente da tasca. Por mais que enfiasse notas nos decotes das experientes mulheres da vida, por mais que procurasse variar a oferta, com novas e velhas, gordas e magras, loiras e morenas, à pergunta de “Então, então, o rapaz?”, seguia-se invariavelmente um encolher de ombros e um sorrisinho malicioso.
A coisa já começava a ser comentada no bairro, valendo ao primogénito o expressivo diminutivo de Dudu. Guto, a quem as sovas na mulher começavam a não bastar para lhe acalmar os ânimos, tomou então uma medida drástica: alistou o Dudu na marinha. Se lá não fizessem dele um homem, em mais nenhum sítio o fariam.
Usando uma das duas únicas técnicas persuasivas que conhecia, o afogar resistências em tinto (a outra reserva-a para a mulher, de físico menos desenvolvido que o dele), enfiou o rapaz num navio, numa madrugada de Dezembro, dias antes do Natal.
Durante o tempo em que o filho andou no mar, ao Guto Mané arrebitaram-se-lhe as pontas dos bigodes, entre outras coisas e o seu dinheiro, ganho a engraxar sapatos à porta do Ministério da Justiça, foi dado como bem empregue nos balcões de mármore das tascas e por entre as mamas das mulheres da rua.
A felicidade acabou-se quando o navio em que embarcara o Eduardo Mané, atracou no cais, um mês depois. O filho, tostado pelo sol, lá isso não se podia negar, regressara com mais um apodo na bagagem, o qual resumia bem a sua curta carreira na marinha: Dudu do Tutu.
Desde essa altura, os bigodes do Guto murcharam tanto que até a Eugénia, o saco de boxe com quem casara, sentiu qualquer coisa próxima da simpatia por ele. Eugénia, como tantas outras esposas, depois que o marido baixou os braços, rendido, tomou o caso entre mãos. Ligou ao irmão, de quem o rapaz herdara o nome e, pelos vistos, mais qualquer coisinha, pedindo-lhe ajuda.
O tio Eduardo, de costumes duvidosos e coração ansioso por reparar os danos que causara na família, acudiu a casa da Eugénia, num dia em que estava de folga no Cabaré. Dudu, ao ver, pela primeira vez na vida, o tio materno, simpatizou imediatamente com ele. Que modos delicados, os dele! Nada abrutalhados, como os do pai. E que cútis tão cuidada!
Não foi preciso insistir com o rapaz para que fosse viver com o tio e tentar a sua sorte como performer – termo com que o tio se designava a si mesmo, talvez para desviar a atenção das plumas e lantejoulas que usava no palco.
Assim que transpôs a porta do Cabaré onde trabalhava miss Fournier, nome artístico do tio, Dudu soube que tinha encontrado o seu lugar. O rapaz tinha boa voz, corpo delgado, como o da mãe e, no que dizia respeito a movimentar-se, mais graça do que a mais graciosa das mulheres, e não tardou a criar fama na noite da capital. Chegou mesmo, num espectáculo de variedades, a aparecer na televisão. Que mais poderia ele desejar?
Eugénia não o voltou a ver desde a vez em que passou na tv e guardou um secreto orgulho pelo filho, tão dotado para a vida artística. Quanto ao Guto Mané, o episódio com a marinha desmoralizou-o permanentemente da cintura para baixo, motivo pelo qual, depois das noitadas, já não lhe sobrava genica para as fêmeas nem para o exercício de bater na mulher. Dudu, esse, descobriu que por trás de um desajeitado homem se esconde, por vezes, uma esplêndida mulher.