quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

O mundo de Balduino

Foto: Taking a holiday out of this world, originally uploaded by Manuperez

O mundo onde Balduíno implantou a sua casa era muito pequeno porque a sua casa era todo o seu mundo. Do quarto à cozinha, da janela ao quintal, da porta das traseiras à sala e da sala para o universo, tudo ficava a umas páginas de distância (era assim que se deslocava Balduíno). Este homem gostava de ter o mundo à mão, o mundo na mão, a mão a abrir caminhos no mundo. Da sua poltrona tinha acesso a todos os comandos de que necessitava: o da luz, o do gira-discos e o da máquina de café.
Nas estantes possuía fragmentos de todos os mundos existidos e por existir: todos os continentes, todos os mares, os céus, os sentimentos, as cores, os edifícios, as aves, os materiais, as escalas musicais, as pontes, as anatomias, todos os versos, todas as histórias, todos os milagres, as plantas, os mecanismos, os cálculos, os silogismos, todas as imagens – a cores, incolores, fixas, em fuga, surpreendidas e surpreendentes – todos os sons, todas as esperas, todos os desgostos de amor, todos os nomes, os nascimentos, os erros, as emendas, as estradas, os becos sem saída, os fusos horários, os grãos de areia e uma foto do seu cão.
Mas apesar de tão exaustiva lista, Balduíno, todos os dias e todas as noites, e, ainda, a todas as horas que decorriam entre o amanhecer e o anoitecer e entre este e o novo amanhecer, olhava pela janela e descobria reflexos novos no mundo. Mesmo com tão aturado esforço analítico, dava-se conta de que cada coisa nova lhe baralhava e tornava ridículas todas as categorias, todas as arrumações das suas estantes e do seu pensamento.
Balduíno, insurgido contra os limites das páginas publicadas, que sempre eram demasiado estreitos para abarcar a realidade (ou a ficção, para o caso, dava no mesmo) sobre a qual se debruçavam os escritos, extraiu um diluente textual do livro dos químicos e apagou à letra todas as inscrições constantes dos inúmeros volumes que povoavam as suas prateleiras, deixando todas as páginas imaculadamente brancas.
O primeiríssimo alvo da sua ira foi a "Gramática". Após a sua fúria branqueadora, toda a escrita passou a reger-se pela falta de regras, pela anarquia, a libertinagem, o caos.
Balduíno sorria, como que embriagado, perante o desgoverno das palavras que agora, mais do que nunca, se viam impossibilitadas de descrever coisa alguma.
(continua... acho : )

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