sábado, 25 de outubro de 2008

Salão Paraíso

Ele ali está, sentado na mesa do canto, omnividente. Peço um café e uma nata para levar, tentando subtrair-me rapidamente à sua atenção. Já não suporto aqueles olhos enormes a quererem que eu caiba neles. No outro dia mandou-me pelo empregado um daqueles guardanapos que dizem "obrigado pela sua visita". Que patético!

Fica para ali sentado, todas as tardes, à espera, com certeza, de poder ver-me no intervalo do lanche, quando deixo as cabeças em transição do moreno para o loiro ou do encaracolado para o liso, numa busca barata de uma nova identidade. Qualquer dia é bem capaz de seguir-me ao sair do salão e de forçar a entrada no meu prédio, ou então de passar a espiar-me, escondido atrás dos carros, esperando ver-me passar lá em cima através da transparência das cortinas.

Volto apressada para as senhoras em fila às portas do fim de semana, desejosas de agradar a maridos que nunca dão por elas ou de captar a atenção de algum divorciado na avenida, tão necessitado de companhia quanto elas. A minha missão é proporcionar-lhes a beleza escolhida nas revistas cor de rosa, como se os penteados fossem meio caminho andado para as vidas dos famosos; mal sabem elas que também as celebridades dormem em quartos escuros de casas demasiado grandes. Mas à sexta-feira acreditam sempre e eu pactuo com o seu acto de fé.

À hora de fechar, sigo, despenteada e descrente, para o meu apartamento. Meto uma refeição pré-cozinhada no micro-ondas e mastigo-a na companhia dos apresentadores de tv. Antes de deitar-me, espreito pela janela, não vá o tarado do café estar lá em baixo e eu ter vontade de chamá-lo, para aplacar o meu vazio e recompensar-lhe a dedicação, àquele filho da mãe a quem todas as noites, na intimidade do meu quarto, deixo que me coma com os olhos, saciando por fim a fome de ambos.

sábado, 18 de outubro de 2008

A riqueza de Sebastião (se um dia tivesse ganho a lotaria)

Chegou um dia em que Sebastião decidiu alargar os limites de sua casa até quase o infinito. Passou a ter cama dura e a não ter onde pendurar fosse o que fosse, por falta de paredes. As despesas de iluminação e aquecimento passaram a ficar por conta do universo, as de alimentação, da generosidade alheia.
Por ter aumentado exponencialmente o número de vizinhos, sentia-se à vontade para abordar qualquer um deles, como fez comigo no dia em que fui à Clínica confirmar o recheio do ventre. Era Agosto e tocou-me com o dedo nas costas, assegurando-me que não devia temer o seu aspecto andrajoso. Pedia uma moeda. Em troca, amealhava versos.
Durante anos, Sebastião não forneceu aos correios um endereço onde pudessem entregar-lhe a correspondência, vivia à solta por aí. Certa noite, passava em frente a um quiosque quando reparou num papel no chão. Precisado de suporte para versejar, recolheu-o, como era seu costume. Ao examiná-lo para averiguar se se prestava à sua necessidade, percebeu que se tratava de um bilhete da lotaria instantânea. Alguém sequioso de informação devia tê-lo deixado cair de entre molhos de revistas ou jornais. Sentiu curiosidade em ver até onde estava o destino, que o tinha feito deparar com a lotaria, disposto a ir. Raspou o bilhete com a unha grossa e suja e descobriu que o destino estava disposto a ir até ao fim. Guardou a raspadinha no bolso e, nessa noite, os seus pensamentos rodaram em torno dos caminhos que escolhemos para andar e aqueles por onde a mão caprichosa do acaso nos quer levar.
No dia seguinte, os passos de Sebastião sabiam onde deveriam levá-lo. Foi ao quiosque entregar a lotaria e reclamar o prémio. Para recebê-lo, pôs, contudo, uma condição: queria-o em notas pequenas.
Já de posse da sua modesta fortuna, Sebastião sentou-se na paragem de autocarro onde era frequente encontrá-lo e sacou de um toco de lápis. Trabalhou com afinco durante todo o dia e ainda parte do seguinte. Chegada a hora de ponta, começou a distribuir a sua poesia pelos transeuntes, feliz por ter, inesperadamente, tantas notas onde escrever.

P.S. Foi verdade que existiu um Sebastião em Braga que me tocou naquela altura e daquela forma no ombro e que, sem casa por opção, enriquecia com cada verso. Esta é a minha moeda.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Da solidão

Só pode ter sido da solidão. De todos aqueles lugares vazios em volta – na mesa, enquanto comia ração para um, no sofá onde as gargalhadas orginadas por um progama na tv soavam uníssonas, na cama, onde apagava a luz sem despedidas, sem desejos de dorme bem.
Vira-o por várias vezes no autocarro, nariz sempre enfiado num livro, até que um dia calhara sentar-se em frente dele. De repiração suspensa, reparou na coincidência da capa, igual à que repousava na mesa de cabeceira dela. Liam as mesmas palavras!
Já em casa, segurava, de mãos trémulas, a sua cópia do livro, incapaz já de ler com os seus olhos e de pensamento preso nos olhos dele, cuja cor, afinal, ignorava, por terem estado sempre protegidos do que o rodeava pelas pálpebras que dirigiam o olhar unicamente para as folhas do livro.
Começou a imaginar, para além da coincidência das capas, uma coincidência de leituras e de sentimentos despertados por elas. Tinha consciência do absurdo, mas ao virar-se, na cama, de livro na mão, a almofada deserta convencia-a a buscar-lhe uma cabeça para se pousar nela, e a dele parecera-lhe tão comovente...
Continuaram durante alguns dias as viagens do corpo no autocarro e as da imaginação nos móveis de casa.
Num Domingo, tinha ela acabado de entrar no autocarro para ir ao centro da cidade, repara nele, mãos ocupadas não com um livro, mas com outras mãos – umas só um pouco mais pequenas que as dele, de mulher, e outras de criança.
Desde então, continuam a coincidir no autocarro, mas ela já não empreende viagens com ele ao chegar a casa, mesmo que continue a espreitar as capas dos livros que a ele lhe passam pelas mãos.

sábado, 11 de outubro de 2008

Maçãs de Junho



Era Junho e vou imaginar maçãs, mesmo adiantando a época. Seriam vermelhas, de travo doce e ácido. Eu estenderia o braço e seria curto o percurso da árvore à boca. E haveria o sol, atirado de folha em folha, numa gama de verdes e amarelos. Zumbiriam as moscas, a relva seria tenra e o céu quase que pequeno para tanto azul.
Claro que também poderia falar do mar - lembro-me de uma noite em que havia o mar - abafando risos com o rebentar das ondas. Aí, o sol bateria em pleno sobre a pele amorenando-se, aturdindo os corpos que ansiariam por banhar-se no mar. Tu sabes que seria gelado, mas isso não descomporia o retrato.
Mas seria sempre, como foi, Junho, e amar-nos-íamos.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Not Jekyll & Hyde

Não havia ali nenhuma droga experimental, nenhum mérito científico, nenhuma ilusão; não lhe nasciam pêlos hirsutos no corpo nem lhe cresciam garras nas pontas dos dedos.
Mas a besta estava lá, devorando-o por dentro, forçando-o a soltar gritos arrepiantes. Sentia as entranhas esfacelarem-se, sangrava copiosamente no seu íntimo.
E no entanto, exteriormente, quase não havia sinal da carnificina que tinha lugar no interior. A não ser, talvez, no olhar vago, desprendido das coisas visíveis, para dedicar-se em exclusivo à dilaceração que sofria.
Estava, sabia-o, para além de qualquer salvação possível. Ainda que o calvário que suportava lhe concedesse um minuto de descanso, ser-lhe-ia inútil pedir socorro. A besta, o inominável, era ele próprio.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

amo-te

Amo-te. Não me importa a inconveniência do sentimento, amo-te.
És capaz de achar divertido. Ou arrepiante. Ou despropositado. Ou mesmo ridículo. Talvez olhes para o lado, tentando imaterializar as palavras por força da ausência do teu olhar. Talvez dês uma gorgeta ao rapaz do café. Ou então talvez assobies a caminho do emprego.
Seja como fôr, levarás o meu sentimento. Foi por isso que ontém, enquanto estavas na fotocopiadora, meti o papel no bolso do teu casaco, para que no dia seguinte, ao resguardares as mãos do frio da manhã, encontrásses lá a minha boca, na minha melhor caligrafia, dizendo em letra pequena: amo-te.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Especulações

O espelho sempre fora honesto com Mercedes. Sempre lhe mostrara os braços curtos, as mãos pequenas, de quem fica sempre a um palmo de alcançar os seus desejos.
Não lhe ocultava, o espelho, que os anos se iam sedimentando sobre o seu corpo, tornando-o familiar e estranho, ao mesmo tempo.
Também pelo espelho conseguia ver os móveis desabitados em todas as divisões da casa, a campainha da porta a ganhar pó.
À noite, sentada defronte da janela virtual, o espelho sabia quem Mercedes via. E ao devolver-lhe a imagem, não deixava de lembrá-la da loucura do seu desejo.
Um dia, Mercedes, cansada do espelho, virou-o de costas para a parede.
Esse dia pode ser amanhã.