domingo, 25 de fevereiro de 2007

Ponta Gêa

Foto: Colecção particular

Tinham-se passado trinta e dois anos desde que deixara aquele país. Agora, visita a cidade onde nasceu, como se reatasse um qualquer cordão umbilical que a ligasse a uma pátria, que lhe concedesse, finalmente, um sentido de pertença.
O bairro residencial, orlado de vivendas, onde residira, dificilmente pode ser considerado ainda o mesmo. O alcatrão da estrada já pouco mais é do que uma recordação, as paredes das casas exibem as suas cicatrizes de guerra e a vegetação, por todo o lado, reclama a sua soberania.
Chegada à rua onde morara, Maria procura o número 604. Reconhece a parede com fragmentos de ardósia, da varanda onde brincava. O jardim está entregue ao matagal e a algumas galinhas que ali procuram sustento. Entra e verifica a porta da frente, que está fechada. Dá a volta à casa até às traseiras, sobe as escadas em caracol e tenta a sua sorte na porta da cozinha. À força de empurrões, acaba por ceder, num queixume chiado. Maria prepara-se para transpor o portal da casa e do tempo.
Atravessa a cozinha, entra na sala e pára um momento. Os caixilhos das janelas foram esventrados dos respectivos vidros, as paredes acumulam camadas negras, como as árvores os anéis, e o chão está coberto de lixo e excrementos de animais. Nos quartos, o cenário é o mesmo. O cheiro dos detritos, intensificado pelo calor, obriga-a a sair.
Já cá fora, Maria olha novamente a casa onde vivera os primeiros sete anos da sua vida; olha-a demoradamente, confirmando a impressão que tivera assim que entrara nela: a de que aquelas paredes não guardavam nenhuma memória, apenas testemunhavam desastres. Em nenhum canto daquela casa, daquela rua, daquele bairro, daquela cidade, daquele país, poderia ela encontrar qualquer presença de si mesma. Ela era, descobrira por fim, uma alma portátil, sem raízes em lugar algum.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

Céu de papel

Foto: superbey, originally uploaded by misterno

Como podia o cigarro manter a chama acesa num dia tão encharcado, era algo que Gonçalo não perdia tempo a tentar decifrar; já o incêndio a que se fintava aquele céu de papel, tinha fácil explicação: era a chuva, de um tamanho miudinho mas persistente, que aguava todos os intentos de atear fogos na paisagem. Porque é que Gonçalo desejava purgar com labaredas aquele lugar, só poderia ser compreendido mantendo o espaço, mas recuando no tempo.

Foto: Walk On By, originally uploaded by GaryP

Arados, tinham sido os seus pés, sulcando trilhos naquele monte e no vale onde desaguava. Na ausência dela, preparara os caminhos para que, quando chegassem os seus passos, florissem espigas, para que, ao voltar a casa, levedasse o pão.
De margaridas vestia a mesa da cozinha, alimentando-as a água da torneira vertida num copo; com sopa e verduras acariciava o estômago dela e, à noite, adormecia saciado do seu cheiro.
Pensava ele que eram felizes, que o contentamento que sentia se estendia a ela. Nunca reparou no olhar ausente que trazia no rosto, nos braços laços com que o rodeava na cama, nas verduras deixadas na borda do prato. E por isso, quando a viu pisar os caminhos que ele semeara, acompanhada de pés estranhos, não compreendeu a leveza no andar dela, o brilho dos cabelos que ao pé dele nunca soltava, as mãos que afinal gostavam de agarrar-se a outras.


Foto: Seul, originally uploaded by mmarsupilami

Passaram-se meses, mas Gonçalo ainda procura, nas nervuras dos troncos das árvores, na espessura da lama dos charcos, nos ramos de onde se ausentaram as folhas, a razão para os passeios daquela que amava terem trocado de companhia.
«Havia aquela expressão, claro - "Mais vale só do que mal acompanhado". Sim», pensou Gonçalo, «se ela não era capaz de apreciar os meus cozinhados, se os seus cabelos não encontravam espaço, junto de mim, para soltar-se, mais vale ter-se afastado. Eu... Eu estou bem assim. Ocupo os dois lados da cama, uso as almofadas sobrepostas, não tenho de mudar de canal nem de emissora para agradar-lhe; não tenho que fazer nenhum esforço para mantê-la ao meu lado, para sentir o odor familiar da sua pele ao acordar, para rechear da sua voz os meus ouvidos. Estou bem, assim, neste silêncio, nesta cama fria, nesta mesa posta em números ímpares...»

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

O fim (a partir de uma citação* de "O Senhor Calvino", de Gonçalo M. Tavares)

Foto: \/, originally uploaded by fabbio

Calvino chegara à esquina da rua Sevignon para descobrir, com espanto, que afinal aquela não era a morada do infinito, mas a do seu contrário.
A cidade terminava ali, para começar a repetir-se, simetricamente, do outro lado. A pergunta que pairava no cérebro intrigado de Calvino era se, ao atravessar a rua, se tornaria o senhor Onivlac.
Ponderou largamente sobre as implicações de tal descoberta e decidiu que a satisfação da curiosidade filosófica justificava bem os possíveis riscos.
Cruzou, pois, para o lado de lá e ficou, por breves momentos, à espera. Seguidamente, dirigiu-se ao café onde costumava sacudir, com ingestões de cafeína, o torpor matutino, expectante em relação ao que encontraria. Não foi sem algum desapontamento que verificou que a única diferença entre os dois Cafés era que naquele segurava a chávena com a mão esquerda e que todas as coisas, exactamente as mesmas, se encontravam ali numa disposição simétrica.
Calvino continuou a sua expedição pela cidade do lado de lá, apenas para descobrir que, à parte a simetria, nada mais distinguia os dois lados da esquina da rua Sevignon.
De regresso a casa, operando já com a habitual dextralidade, Calvino afundou-se na sua poltrona, esmagado pela devastadora descoberta que acabara de efectuar. No fim do mundo não se encontra, nem o infinito, nem o fim, mas tão só a sua exacta (ainda que simétrica) reprodução.
P
* «Havia encontrado o que tantos procuravam: o infinito. Apontou a morada no seu bloco de notas. Ficava no final da Rua Sevignon»

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Hélia (Gaspar, Helena)

Foto: pure gold, originally uploaded by darkmatter

A pouco e pouco, à medida que ia aprendendo os passos da dança de Helena, Gaspar avançava mais por entre as espigas.
Um dia em que Helena abriu os olhos enquanto rodava, viu, intermitentemente, um homem vestido a rigor, já demasiado próximo para poder ignorá-lo. Ali, no meio dos campos, Gaspar secundou todos os movimentos de Helena, substituindo pincéis pela matéria do seu corpo.
As danças sucederam-se, com coreografias vindas de tempos imemoriais, que ambos recriavam à medida dos desejos dos seus corpos.
Muito mais tarde, o pas-de-deux tinha corpo, cabelos cor de trigo e nome nascido do vento: Hélia, filha dos campos de espigas.

Gaspar (Helena)

Foto: G-[I], originally uploaded by Florian Szillat
p
Como uma espiga mais erguida no campo, Gaspar observava Helena. Costumava levar uma câmara e fotografar a dança dela, com o obturador regulado para baixas velocidades, de modo a registar as linhas que ela traçava no ar, com os braços, as mãos, a cabeça, as pernas, o corpo.
Regressado a casa, mergulhava os negativos em sucessivos banhos, até que a dança de Helena surgisse, alquimisticamente, no papel, com o qual cobria as paredes do estúdio. Depois, escolhia a banda sonora que lhe parecia mais adequada e reproduzia na tela, com um pincel molhado, os traços de Helena. Ainda que por distintos meios, Gaspar partilhava assim o baile nos campos.
(continua)

Helena

Foto: don't try this at home, originally uploaded by mahese

Helena... O seu nome era tão leve quanto os seus passos, de um bailado particular só por ela dançado.
Em casa, o pai viúvo e os dois irmãos mais velhos, de modos rudes como as mãos, habituados a ter como horizonte o chão que lavravam, riam-se dos movimentos baléticos de Helena. Era por isso que já há muito ela tinha trocado o soalho doméstico pelos campos em pousio, que só as gralhas frequentavam. Aí, a sua dança alargava-se, dando mais impulso à alma.
Naquelas tardes dançadas, Helena era feliz. Mal sabia ela que, ao longe, uns olhos aplaudiam em segredo os seus desenhos gestuais no vento.
(continua)

O guarda-chuva escarlate

Foto: Red umbrella on a wintwer's day, originally uploaded by Little Jimmy in Milwaukee

Verónica, dezasseis anos feitos, queria saber o que era o amor. Proclamava-o na cor dos seus lábios, no sublinhar dos olhos, no cingir da roupa ao corpo. Ritmava o seu desejo com o balançar das ancas.
Aos homens da vila não lhes tinham escapado os sinais, mas Verónica era a filha do Presidente da Junta, o que lhes resfriava os ânimos. Retribuído com a distância, o corpo de Verónica cada vez gritava mais alto. Até que chegou um dia em que a cama da rapariga amanheceu fria e intacta.
Familiares, vizinhos, todos acorreram a auxiliar na busca, mas o único rasto que encontraram, foi o seu guarda-chuva escarlate largado na neve, junto a pegadas de animal quadrúpede. Verónica nunca regressou, mas em certas noites, quando a lua parece prenha, vêem-se reflexos vermelhos vindos das entranhas do bosque.

Foto: umbrella, originally uploaded by mivella

Naquele dia em que, em vão, todos procuraram Verónica, Armindo tinha-se deixado ficar para trás. As suas mãos, tão gulosas quanto os seus olhos, queriam ter o guarda-chuva só para elas. Quantas vezes, desde a porta do café, bagaço na mão, não tinha ele visto Verónica passar, rodopiando o guarda-chuva como rodopiava as ancas? Armindo pegou no guarda-chuva encarnado e encostou o punho ao nariz. Reconheceu o perfume indiscreto da rapariga, tantas vezes alojado nas suas narinas à passagem dela. Desde então, a mata tornou-se o local de romaria de Armindo. Sempre que a lua estava cheia, passeava por lá, com uma candeia numa mão e o guarda-chuva noutra, como um fosforescente cogumelo escarlate.


Foto: une porte rouge, originally uploaded by Bernat_83

O tempo foi passando, mas a imagem de Verónica na memória de Armindo, não. Na vila especulava-se sobre o destino da rapariga mas, apesar das díspares e mais inverosímeis versões, o fim a todas era comum: tinha-se, por certo, desgraçado.
A Armindo pouco ou nada importava que Verónica se tivesse desvirtuado, no bosque ou noutro lugar qualquer, com cristão ou besta: esperaria sempre por ela. Emancipada, pela fuga, do apelido paterno, Verónica era agora uma mulher, apenas uma mulher, toda uma mulher. E Armindo era um homem. E era para lhe dar conta da sua espera, se um dia Verónica voltasse, que Armindo pintara a sua porta de vermelho.
Mas a porta não era o único pormenor vermelho que Armindo introduzira no seu quotidiano: a flor, de um vermelho carnudo, que nunca faltava na jarra da sua mesa-de-cabeceira, o lenço de assoar, impregnado do mesmo perfume que Verónica usava, e outros detalhes, mais íntimos. Pela cor e pelo cheiro iludia Armindo a ausência da rapariga, agora mulher.
Os anos, contudo, nunca se apiedaram da espera de Armindo, e o regresso de Verónica nunca aconteceu.
Armindo morreu virgem e tem, a velar a sua campa, uma luz vermelha que, ninguém sabe como, nunca se apaga.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Ondas laranja

Foto: Ondes oranges, originally uploaded by mmarsupilami

Eram as chamas que vinham lá.
As mãos, sempre tão hábeis a fazer crescer coisas, nada podiam contra a onda de morte que se precipitava para os campos, numa fome voraz, que nem todas as sementeiras do mundo conseguiriam saciar.
Queimavam-se as colheitas, queimavam-se as horas ao sol a cavar, queimavam-se os galões de água bebidos pela terra, queimavam-se as feridas inscritas pela enxada nas mãos, queimava-se o corpo sacrificado em nome das colheitas, queimava-se a comida que a boca já não haveria de provar, queimavam-se as forças para voltar a lutar. Tudo ardia no rastilho de um capricho, de uma afirmação, de uma especulação imobiliária.

Serenidade

Foto: Serenety on Loch Lomond, originally uploaded by nicolas valentin
P
O sol descaía atrás dos montes e, no escuro, todos os medos tomavam forma. O lago, transparente de dia, de noite assumia-se como um espelho negro, reflectindo todas as sombras do mundo, obscurecendo memórias.
Baltazar temia e ansiava pelo encontro com as despudoradas águas. Ali, ao pé do lago, podia destapar todas as feridas - a sua monstruosidade fundia-se com o ambiente do local. O encontro nocturno com o lago ressuscitava fantasmas nascidos em terras africanas, do sangue que a terra bebeu. Neste lugar, Baltazar desenterrava o terror, voltava à convivência com aquele em que, para todo o sempre, a guerra o havia transformado.
(a continuar??)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Alice

Foto: Follow your bliss, originally uploaded by IrenaS

Alice esqueceu aquele dia, precisamente por ser inesquecível.
O tio levara-a na sua carrinha até uma praia a onde se chegava atravessando a ria por uma ponte de madeira. Junho ainda há pouco começara e o calor ainda não levava embalo.
Alice ia à frente, expandindo o olhar pelo horizonte que mudava a cada tábua pisada. O tio seguia-a, fazendo pontaria às costas dela com a máquina fotográfica. Absorta a devorar a paisagem, Alice não sentia os disparos.
No fim da ponte, de repente, a praia. A praia e tudo o mais que veio a seguir. A dor, a vergonha, o medo, a confusão, a raiva. Alice queria ter-se metido num buraco. Como não pôde, escavou um nos confins da memória, onde enterrou a lembrança do dia em que o tio a obrigou a ser mulher.

Função Pública

Foto: Enter, originally uploaded by IrenaS

Um portal no meio de um bosque que deixa quem o franqueia quase no mesmo sítio de onde saiu, era como uma maçaneta sem porta. E essa provocante e transgressora inutilidade fazia-o voltar, vezes sem conta, àquele lugar e a atravessar o umbral, para lá de qualquer lógica.
Este gosto pelo desnecessário, pelo inútil, pelo que esgota em si próprio todo o objectivo da sua existência, adveio-lhe, provavelmente, dos tempos em que era funcionário público. Naquela altura, a sua função consistia em produzir uma montanha de papéis para que o posto do colega do lado, aquele que tratava dos arquivos, tivesse razão de ser. Na repartição onde trabalhava, iam buscar-se papéis aos arquivos, faziam-se cópias certificadas dos mesmos para que estas pudessem ir, por sua vez, engrossar as fileiras de papelada a arquivar noutras repartições públicas. A burocracia, pensava ele, era um movimento gracioso de multiplicação e transladação de documentos oficiosos.
Agora que estava reformado, percorria o bosque em busca de duendes, criaturas quase tão fantásticas como um trabalhador das finanças. Ninguém acredita que possam existir pessoas devotamente dedicadas a imiscuir-se nas contas dos outros e a fazer proliferar papéis, como o Cristo os peixes. Mas havê-las, há-as.
Por entre a folhagem, Secundino (assim se chamava o funcionário público) descobriu um rasto de nevoeiro, muito do agrado da sua nebulosa mente. Seguiu-o, claro está, como quem segue as normas de um procedimento, um passo após o outro, num encadeamento sequencial sem rasuras.
No fim do caminho, erguia-se, já não um portal, mas uma fachada inteira. Que não tivesse porta, não tinha qualquer importância, pois o lado de dentro era simultaneamente o lado de fora. Um paroxismo à medida do gosto de Secundino, apurado por anos a fio a trabalhar na Função Pública. Aquela iria ser, doravante, a sua morada.
(a continuar, um dia...)

O mundo de Balduino

Foto: Taking a holiday out of this world, originally uploaded by Manuperez

O mundo onde Balduíno implantou a sua casa era muito pequeno porque a sua casa era todo o seu mundo. Do quarto à cozinha, da janela ao quintal, da porta das traseiras à sala e da sala para o universo, tudo ficava a umas páginas de distância (era assim que se deslocava Balduíno). Este homem gostava de ter o mundo à mão, o mundo na mão, a mão a abrir caminhos no mundo. Da sua poltrona tinha acesso a todos os comandos de que necessitava: o da luz, o do gira-discos e o da máquina de café.
Nas estantes possuía fragmentos de todos os mundos existidos e por existir: todos os continentes, todos os mares, os céus, os sentimentos, as cores, os edifícios, as aves, os materiais, as escalas musicais, as pontes, as anatomias, todos os versos, todas as histórias, todos os milagres, as plantas, os mecanismos, os cálculos, os silogismos, todas as imagens – a cores, incolores, fixas, em fuga, surpreendidas e surpreendentes – todos os sons, todas as esperas, todos os desgostos de amor, todos os nomes, os nascimentos, os erros, as emendas, as estradas, os becos sem saída, os fusos horários, os grãos de areia e uma foto do seu cão.
Mas apesar de tão exaustiva lista, Balduíno, todos os dias e todas as noites, e, ainda, a todas as horas que decorriam entre o amanhecer e o anoitecer e entre este e o novo amanhecer, olhava pela janela e descobria reflexos novos no mundo. Mesmo com tão aturado esforço analítico, dava-se conta de que cada coisa nova lhe baralhava e tornava ridículas todas as categorias, todas as arrumações das suas estantes e do seu pensamento.
Balduíno, insurgido contra os limites das páginas publicadas, que sempre eram demasiado estreitos para abarcar a realidade (ou a ficção, para o caso, dava no mesmo) sobre a qual se debruçavam os escritos, extraiu um diluente textual do livro dos químicos e apagou à letra todas as inscrições constantes dos inúmeros volumes que povoavam as suas prateleiras, deixando todas as páginas imaculadamente brancas.
O primeiríssimo alvo da sua ira foi a "Gramática". Após a sua fúria branqueadora, toda a escrita passou a reger-se pela falta de regras, pela anarquia, a libertinagem, o caos.
Balduíno sorria, como que embriagado, perante o desgoverno das palavras que agora, mais do que nunca, se viam impossibilitadas de descrever coisa alguma.
(continua... acho : )

Cisão

Foto: You and me, originally uploaded by Guillaume!

De vez em quando acontecia-lhe isto: a consciência de si mesmo desagregava-se e perdia o fio à meada de si próprio. Sem Ariadne que lhe valesse, enovelava-se todo, não tendo ponta por onde se lhe pegar.
Ficava assim, centrifugado, até que qualquer coisa, na ponta do sapato, na manga da camisola ou no padrão das meias o devolvesse à sua morada. Eram estes pormenores, tantas vezes observados ao som monótono de vozes docentes, os heróis anónimos que o resgatavam da cisão por onde se escapava.

Avenue du Baobab

Foto: Avenue du Baobab (01591), originally uploaded by giamplume

Ernesto Chicuembo tinha subido na vida. Mudara a sua palhota para a grande avenida, à entrada da cidade, e estava pronto para tomar mulher.
Aos Domingos, atravessava a Avenida do Baobab na sua bicicleta, transístor incorporado por meio de uma complicada arquitectura de arames, ouvindo marrabentas.
Olhava as moças de capulana, com olhar de apreciador. Elas, por entre risinhos, mostravam o seu agrado.
Na sua cubata da avenida, tinha um tapete de terra batida, telhado de colmo, uma esteira e pouco mais. Mas sentia-se como num palácio, em comparação com as instalações cimentadas de que dispunha nas traseiras das vivendas dos brancos. Um dia...
Assim partilhava Ernesto o pensamento com todos os outros que se tinham visto impedidos de decidir o destino da sua própria terra, por furores colonialistas.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Petipá

Foto: mushroom, night, originally uploaded by monitorpop

Petipá correu a abrigar-se debaixo do cogumelo. Os aspersores tinham acabado de pôr-se em marcha e não queria ficar encharcado.
A relva fazia-lhe cócegas no nariz, obrigando a fisionomia de Petipá a contorcer-se em hilariantes caretas.
Passados dez minutos, quando os aspersores recolheram ao seu esconderijo subterrâneo, Petipá deixou o providencial abrigo e continuou o seu caminho por entre as verdes ondas, procurando pôr o apêndice nasal a salvo dos travessos dedos da relva.
Foi parando aqui e ali para colher margaridas, até já não ter braços que chegassem para tantas. Aí, deu-se por satisfeito e regressou ao nobre carvalho, onde as ervas dissimulavam uma pequena entrada para o interior concêntrico em que instalara a sua morada.
Minúsculo pé ante minúsculo pé, aproximou-se do leito onde dormia ainda Petipiê. Atapetou o chão com as margaridas e sentou-se à espera de ver os pés nus de Petipiê sobre as corolas das flores.
Petipá era um homem quase microscópico com um coração gigantesco.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Irlanda

Foto: Boireann, originally uploaded by DCCXLIX

Lá em baixo, abruptamente, o mar.
O vento nas costas, seduzindo-nos, sussurrando-nos desvarios de asas, apelidando-nos, provocativamente, de Ícaros. O sol, conivente.
As ondas projectando a sua saliva salgada para lá das rochas, até quase lhe sentirmos o gosto.
Para trás, imensidões de verde, os olhos a pastar.
E no fim, a pena: nunca te beijaram os meus pés, Irlanda.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Shoe

Foto: Shoe for the Girls, originally uploaded by mikerosebery

Lídia era uma menina tímida e de uma beleza, como tudo o resto em si, discreta. Tinha os cabelos da cor dos olhos, tudo cor de avelã. Não havia, nas suas feições, nada que chamasse especialmente a atenção. E, no entanto, quem reparasse nela, não a esquecia.
A mãe, uma assistente social que ocupava grande parte do seu tempo em trabalhos de voluntariado na paróquia, não admitia interferências de algo tão supérfluo como os gostos de uma menina de 8 anos, no momento de fazer compras para o guarda-roupa da filha.
Certo dia, a mãe de Lídia trouxe para casa um par de sapatos com uma sola inesgotável. Ao calça-los, os pés de Lídia rejeitaram-nos tanto como o tinham feito os seus olhos. Aquela sola condenava Lídia a muitos dias de uso daquelas aberrações andantes. Conhecendo a intransigência materna, Lídia não reclamou.

No dia seguinte, antes de ir para a escola, Lídia calçou os sapatos de validade indeterminada, depois de ter vestido uma saia e um pull-over que, em questões de estética, em nada destoavam do calçado. Pôs a pasta às costas e saiu. Na escola, não deu importância aos olhares, ainda mais embasbacados do que o costume, que recaíram sobre o par de sapatos.

No fim das aulas, Lídia não foi para casa. Era dia da mãe dar sopa aos pobres, o que significava que a menina podia faltar à sua. Foi para um descampado onde abundava toda a espécie de desperdícios, bem como poças de espessa lama. Lídia andou por lá mais do que já tinha andado em toda a sua vida. Não deu um segundo de descanso aos sapatos, decidida a provar que a sua vontade era mais resistente do que as solas daqueles.

Ao anoitecer, ainda a mãe não tinha chegado a casa, Lídia entra no quarto e descalça, definitivamente, os horríveis sapatos, derrotados e rotos. Nessa noite, Lídia dormiu feliz.

Constantino

Foto: Rocky Moorland, originally uploaded by Jon Stead
P
Constantino aconchegou-se dentro do capote enquanto galgava penedos, com pernas tão seguras como as de uma cabra montesa. Levava a tiracolo a saca com o naco de broa e o chouriço, para lhe animar o corpo quando as milhas já fossem muitas. Tinha partido antes de o sol deixar o lado de lá da Terra, em busca de Jaime.
O seu filho fora para o monte com as cabras; estas voltaram, ele não. Lá no fundo do peito, Constantino sempre soubera que, mais dia, menos dia, isto havia de acontecer. Na boca de Jaime, as perguntas germinavam ainda mais que as urzes nos montes e nos seus olhos, adivinhava-se o outro lado do horizonte. Qualquer homem feito sabe que quando os olhos se fitam numa coisa, a alma acaba por ir atrás.
Constantino seguiu o sol até ao ponto onde se pôs, mais por obrigação paterna do que pela esperança de encontrar o Jaime. Para lá dos picos, as mulheres têm outro linguajar e um negro olhar que não mais larga quem o contempla. Aqueles montes só tinham espaço para Jaime crescer até se enrijecer a barba. Agora que os seus queixos arranhavam ao toque, Jaime teria de ir para outro lugar. Não era o primeiro a passar a fronteira, mas seria certamente dos últimos; aquela terra já poucos filhos tinha para dar.

N. Sra. da Boa Viagem

Foto: Reflections, originally uploaded by FreeMySoul

Júlio todos os dias repetia a mesma peregrinação até à capela da N. Sra. Da Boa Viagem. Todos os dias abria porta e janelas, para deixar que ventos ensolarados lavassem as paredes imaculadas do edifício; mudava a água das flores ou colhia outras, frescas, quando era caso disso; reacendia o círio vestido de encarnado, sempre que uma brisa se excedia por entre as frinchas; soprava amorosamente o pó que durante a noite se estendia, em manto, sobre o altar; deixava preces aos pés da Virgem, mais para que os seus santos ouvidos tivessem companhia, do que por ter o que pedir.
Júlio cumpria estes rituais todos os dias, ainda que na capela já não se ouvisse missa, ainda que todos os passos se tivessem alheado daquele lugar, ainda que já quase não restassem, na povoação, pernas para lá chegar. Nossa Senhora sempre escutara quem a ela recorria rogando por uma boa viagem e, talvez por isso, já todos tinham partido. Apenas Júlio permanecera, satisfeito com o pouco que tinha, ignorando que há muito mais a desejar, contentando-se em cumprir fiel e dedicadamente as obrigações de que nenhuma outra autoridade, senão a sua, o havia incumbido.