Alice esqueceu aquele dia, precisamente por ser inesquecível.
O tio levara-a na sua carrinha até uma praia a onde se chegava atravessando a ria por uma ponte de madeira. Junho ainda há pouco começara e o calor ainda não levava embalo.
Alice ia à frente, expandindo o olhar pelo horizonte que mudava a cada tábua pisada. O tio seguia-a, fazendo pontaria às costas dela com a máquina fotográfica. Absorta a devorar a paisagem, Alice não sentia os disparos.
No fim da ponte, de repente, a praia. A praia e tudo o mais que veio a seguir. A dor, a vergonha, o medo, a confusão, a raiva. Alice queria ter-se metido num buraco. Como não pôde, escavou um nos confins da memória, onde enterrou a lembrança do dia em que o tio a obrigou a ser mulher.
1 comentário:
Tantas Alices...e tantas Marias, Anas... e tantas vergonhas, e medos, e receios; e vidas transtornadas e raiadas pela raiva, e turvadas pela indignação e pela (in)submissão; e consternadas pela constante pressão psicológica, e para sempre condenadas pela impotência da sua infância e junventude mal vividas, enterradas...para sempre marcadas...no corpo, na mente, na alma, e sobretudo no coração daquelas que sofrem no corpo, na alma, e na mente esta forma tão dolorosa e insuportavel de se transformarem em mulher.
Para que não haja mais Alices no mundo e para que Tios destes não se acobertem mais e para que possamos esvaziar, finalmente, as gavetas das nossas memórias!...
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