sábado, 18 de outubro de 2008

A riqueza de Sebastião (se um dia tivesse ganho a lotaria)

Chegou um dia em que Sebastião decidiu alargar os limites de sua casa até quase o infinito. Passou a ter cama dura e a não ter onde pendurar fosse o que fosse, por falta de paredes. As despesas de iluminação e aquecimento passaram a ficar por conta do universo, as de alimentação, da generosidade alheia.
Por ter aumentado exponencialmente o número de vizinhos, sentia-se à vontade para abordar qualquer um deles, como fez comigo no dia em que fui à Clínica confirmar o recheio do ventre. Era Agosto e tocou-me com o dedo nas costas, assegurando-me que não devia temer o seu aspecto andrajoso. Pedia uma moeda. Em troca, amealhava versos.
Durante anos, Sebastião não forneceu aos correios um endereço onde pudessem entregar-lhe a correspondência, vivia à solta por aí. Certa noite, passava em frente a um quiosque quando reparou num papel no chão. Precisado de suporte para versejar, recolheu-o, como era seu costume. Ao examiná-lo para averiguar se se prestava à sua necessidade, percebeu que se tratava de um bilhete da lotaria instantânea. Alguém sequioso de informação devia tê-lo deixado cair de entre molhos de revistas ou jornais. Sentiu curiosidade em ver até onde estava o destino, que o tinha feito deparar com a lotaria, disposto a ir. Raspou o bilhete com a unha grossa e suja e descobriu que o destino estava disposto a ir até ao fim. Guardou a raspadinha no bolso e, nessa noite, os seus pensamentos rodaram em torno dos caminhos que escolhemos para andar e aqueles por onde a mão caprichosa do acaso nos quer levar.
No dia seguinte, os passos de Sebastião sabiam onde deveriam levá-lo. Foi ao quiosque entregar a lotaria e reclamar o prémio. Para recebê-lo, pôs, contudo, uma condição: queria-o em notas pequenas.
Já de posse da sua modesta fortuna, Sebastião sentou-se na paragem de autocarro onde era frequente encontrá-lo e sacou de um toco de lápis. Trabalhou com afinco durante todo o dia e ainda parte do seguinte. Chegada a hora de ponta, começou a distribuir a sua poesia pelos transeuntes, feliz por ter, inesperadamente, tantas notas onde escrever.

P.S. Foi verdade que existiu um Sebastião em Braga que me tocou naquela altura e daquela forma no ombro e que, sem casa por opção, enriquecia com cada verso. Esta é a minha moeda.

2 comentários:

túpido disse...

Um Sebastião que não precisava de comer muito para comer quase tudo.

Estás cada vez melhor! E já eras fantástica para começar!

maria pragana disse...

Se calhar saiu de casa para não ficar barrigudo nem dar pancada na mulher! ;D

Obrigada por continuares a espreitar os meus garatujos. :)