segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Da solidão

Só pode ter sido da solidão. De todos aqueles lugares vazios em volta – na mesa, enquanto comia ração para um, no sofá onde as gargalhadas orginadas por um progama na tv soavam uníssonas, na cama, onde apagava a luz sem despedidas, sem desejos de dorme bem.
Vira-o por várias vezes no autocarro, nariz sempre enfiado num livro, até que um dia calhara sentar-se em frente dele. De repiração suspensa, reparou na coincidência da capa, igual à que repousava na mesa de cabeceira dela. Liam as mesmas palavras!
Já em casa, segurava, de mãos trémulas, a sua cópia do livro, incapaz já de ler com os seus olhos e de pensamento preso nos olhos dele, cuja cor, afinal, ignorava, por terem estado sempre protegidos do que o rodeava pelas pálpebras que dirigiam o olhar unicamente para as folhas do livro.
Começou a imaginar, para além da coincidência das capas, uma coincidência de leituras e de sentimentos despertados por elas. Tinha consciência do absurdo, mas ao virar-se, na cama, de livro na mão, a almofada deserta convencia-a a buscar-lhe uma cabeça para se pousar nela, e a dele parecera-lhe tão comovente...
Continuaram durante alguns dias as viagens do corpo no autocarro e as da imaginação nos móveis de casa.
Num Domingo, tinha ela acabado de entrar no autocarro para ir ao centro da cidade, repara nele, mãos ocupadas não com um livro, mas com outras mãos – umas só um pouco mais pequenas que as dele, de mulher, e outras de criança.
Desde então, continuam a coincidir no autocarro, mas ela já não empreende viagens com ele ao chegar a casa, mesmo que continue a espreitar as capas dos livros que a ele lhe passam pelas mãos.

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