segunda-feira, 16 de abril de 2007

Bio-facsímile


Ela era uma Bio-facsímile de terceira geração. A sua cobertura, de silicone texturizado de alta definição, tinha todas as ramificações de uma pele de ente humano; o seu sistema coordenador central era de uma complexidade assombrosa; os terminais sensitivos eram extremamente apurados; os aparelhos locomotores eram de alta performance e a sua capacidade expressiva era impressionante, para uma criação de existência simulada.
Quando ele a viu na montra do seu terminal de conexão global, soube que tinha de tê-la. Nuno Vaz era um artista e, portanto, tinha uma existência underground, sempre iludindo as Autoridades do Desempenho Economicamente Relevante, ludibriando os fiscais dos Registos de Contribuição Social, apenas tolerantes para com os contribuintes da Gama de Excepção, como os Representantes das Organizações de Gestão dos Assuntos Públicos.
Sob um designativo pessoal falso, Nuno inscreveu-se para uma transacção de compensação equitativa da Bio-facsímile por tranches, fornecendo, para o efeito, um Número de Ubicação de Rendimentos forjado por contactos da Resistência Anárquico-Subversiva.
Recebeu, através de uma Companhia de Transportes Independente - as únicas que não mantêm um registo de localização de clientes - a primeira entrega da sua aquisição: um par de olhos num invólucro resistente a culturas parasitárias.
Nuno colocou os olhos numa pequena plataforma de transporte que trazia pendurada ao pescoço. Os órgãos da Bio-facsímile, embora isolados do resto da assemblagem, cumpriam todos os requisitos para os quais haviam sido desenhados. Dispunham de um sistema de transmissão de dados para o coordenador central da biofax (diminutivo de Bio-facsímile), o qual registava todas as percepções visuais dos órgãos oculares.
Os olhos da Biofax testemunhavam todos os instantes da vida do seu detentor, desde os mais íntimos e insignificantes, até aos passíveis de severa repreensão por parte das Autoridades Democraticamente Consentidas. Embora soubesse que isso constituía um risco grave, no seu interior, Nuno estava convencido de que nada tinha a temer por parte da sua Biofax.
Passado algum tempo, Nuno recebeu a segunda entrega, desta feita um set de dedos. Dado não ser ainda possível proceder à assemblagem do conjunto da Biofax, também os dedos vinham no mesmo tipo de invólucro dos olhos e, por conseguinte, Nuno não podia ter um contacto directo com os mesmos. Estes, contudo, registavam todas as impressões tácteis a que eram expostos, enviando-as, igualmente, para o coordenador central da Biofax. Os dedos seguiam todos os movimentos de Nuno e, durante a noite, repousavam sobre o seu peito, enquanto dormia. Com intervalos de tempo seguros entre as entregas, Nuno foi recebendo as várias partes constituintes da sua Biofax: os pés, os joelhos, o pescoço, as ancas, os ombros, as orelhas, as coxas, os braços, o nariz, as pernas, o peito, a cabeça e, por fim, a boca.

No dia da última entrega, Nuno não conseguiu dormir. Passou a noite sentado no meio do chão do armazém que acumulava as funções de habitação e atelier, olhando atentamente cada uma das fracções da Biofax. A partir do momento em que finalizasse a assemblagem, tudo mudaria, e ele, simultaneamente temia e ansiava por esse instante.
Aos primeiros sinais de iluminação exterior artificialmente gerada, Nuno levantou-se e iniciou o processo de assemblagem que lhe ocupou o dia inteiro. À noite, a Biofax estava, pela primeira vez desde que tinha sido submetida aos testes performativos e, posteriormente, remetida para as prateleiras do depósito de facsímiles idênticos a ela, pronta para funcionar em pleno.
Após alguns instantes em que permaneceu imóvel frente à Biofax, contemplando-a, Nuno aproximou-se de Bia (como apelidara a Biofax), colocou a mão direita por trás do seu pescoço e puxou-a suavemente para si. Era um espécime impressionantemente bem conseguido. Nuno sentia a textura e a temperatura de Bia em cada dedo da sua mão direita. Olhou fundo nos seus olhos e nada neles traía a sua origem cibótica. Olhou o nariz, levemente inclinado – a facsímile continha algumas imperfeições, para torná-la mais verosímil – a boca… Nuno não se atreveu, ainda não.
Aproximou o seu corpo do dela, lenta e inexoravelmente, sentiu as formas dela encostadas a si, um batimento ritmado proveniente do peito dela, o movimento da caixa torácica. Bia inclinou levemente a cabeça e Nuno roçou-lhe o pescoço com os lábios. A mão direita de Nuno descera já do pescoço e dobrara-se em concha, adoptando a forma do seio de Bia. O mamilo dela reagiu. A mão de Nuno continuou a sua descida pelo ventre, pelas ancas, até às nádegas. No regresso, a mão emaranhou-se delicadamente nos pêlos púbicos dela. Nuno perguntava-se se verificaria mais alguma reacção no corpo de Bia.
A distância a que estava do corpo dela – uns escassos centímetros – era-lhe já insuportável. Passou os braços por baixo das axilas dela e, com as mãos sobre as omoplatas, puxou-a para si, até sentir que já não havia mais distância. O seu sexo, ao contrário da boca, ainda relutante, estava pronto e decidido. Nuno penetrou-a e pôde verificar que a semelhança com os humanos se estendia ao íntimo de Bia. No último momento, teve medo de ejacular no seu interior e retirou-se. Bia tinha estado passiva mas cooperante. Dir-se-ia, paciente.

Não foi necessário, à BioFax, nenhum período de adaptação ao seu detentor, já que o tinha vindo a conhecer por meio de informações fragmentadas que o seu coordenador central sistematizara, formando um todo coerente, flexível, adaptável e mais preciso do que a consciência que Nuno tinha de si próprio.
À medida que Nuno se foi familiarizando com a presença de Bia, a lembrança de que ela era uma Bio-facsímile foi-se esbatendo, até quase desaparecer. A boca de Nuno conhecia já todos os recantos da dela e a única coisa que distinguia a sua relação sexual com Bia da de uma mulher era que aquela se revelava cada vez mais plena. Aliás, toda a interacção com a Biofax se revelava satisfatória para além de todas as suas expectativas. Bia conhecia o trabalho de Nuno, compreendia-o melhor que ninguém, apoiava-o, assistia-o, criticava-o, inspirava-o, enriquecia-o. A nível pessoal, Bia supria todas as necessidades do seu possuidor.

Tinham decorrido cerca de dois meses desde o dia da assemblagem da Biofax, quando Nuno se apercebeu, de súbito, de que tinha deixado progressivamente de trabalhar e de que passava todo o seu tempo perto do corpo de Bia, numa distância cada vez mais ínfima, quase imperceptível. Nuno deu-se então conta de que se tinha vindo a instalar no seu íntimo um desconforto relativamente a Bia e, a partir daí, esforçou-se por descobrir a razão, aparentemente despropositada, desse sentimento.
Bia era tudo o que Nuno sempre sonhara e muito mais. Não havia nenhum aspecto da sua vida que não tivesse sido melhorado pela simples presença da Biofax, que adivinhava a sua mais insignificante necessidade, vontade ou simples capricho, ao ponto de já não restar nenhuma necessidade que não tivesse sido suprida, nenhuma vontade incumprida, nenhum capricho insatisfeito. Nada por preencher, satisfação total.
Com a desculpa de uma sobrecarga nos níveis de energia consumidos, Nuno explicou a Bia que teria de desmontá-la, temporariamente. Solícita como sempre, Bia assentiu. Nuno devolveu cada fracção da Bio-facsímile ao seu invólucro protector, revivendo as memórias que lhes estavam associadas. Com gratidão, mas sem pena, Nuno regressou à sua existência solitária, insatisfeita mas repleta de desejos.

1 comentário:

maria pragana disse...

Para B. V., no meu corpo, no meu pensamento.