segunda-feira, 9 de abril de 2007

"Rica em Sonhos"

Noémia cantarolava o genérico da Floribella enquanto rabiscava, no verso de uma conta de supermercado, a lista das coisas que era preciso comprar (não tenho nada…). Abre as portas do armário da cozinha, pára para pôr mais comida ao gato, espreita a lingerie que a vizinha do 2º direito está a estender e retoma a tarefa.
“Ui, já se me acabou o 'espaguete'! Da maneira como se come nesta casa, mais vale trazer logo 3 pacotes!... (… sou ric’em sonhos…)”.
Numa caligrafia que em nada melhorou desde que terminou a quarta classe, aponta os 3 pacotes de esparguete no pedaço de papel . Liga o rádio, sempre sintonizado na Renascença e abana as ancas ao som da música que continua a trautear mentalmente.
“(…mas tenho, tenho tudo…) 'Féri' p’á loiça… palha d’aço… 'dabliucê' pato… dos produtos da limpeza acho que não preciso mai’ nada.”.
Noémia tira os óculos que, ultimamente, lhe fazem muito calor na cara. Aliás, ultimamente, parece que tudo lhe faz calor, apesar de estar em Janeiro.
“Ai, credo!”.
Senta-se no banco a abanar-se com o parco papel. Quando lhe passam os calores, volta a olhar para o armário da cozinha, em busca de mais mercearia em falta.
“Arroz ‘inda tenho… farinha tam’ém… 'espaguete'… Mau!... Mas eu não apontei o espaguete?... Sim! Ai, esta minha cabeça!... Espaguete não é preciso, tenho 3 pacotes (…não tenho nada, mas tenho, tenho tudo…)”.
Abre o frigorífico e passa o interior em revista.
“A Becel p’ó costerol: 2 pacotes; os iogurtes de 'Alô' Vera: aí… 2 embalagens; Limiano: 1 bola (…mas tenho, tenho…); as verduras… compro no mercado, na banca da Saõzinha, são mais fresquinhas…”.
Ainda não tinha fechado completamente a porta do frigorífico quando voltou a abri-la.
“Vou comer o iogurte que ‘tá ali, antes que acabe o prazo. Ai, não pode ser! ‘Inda agora só aqui havia um iogurte e agora estão cá 2 embalagens!... E o Limiano… a Becel! Que carago! Ou eu estou doida ou aqui há dedo do demo!”.
Noémia benzeu-se, beijando os dedos no fim.
“Valha-me S. Bentinho da Porta Aberta! Tudo o que ponho no papel aparece-me aqui!”.
Desta vez os calores atingem-na de tal forma que a Noémia tem de desapertar alguns botões da bata e ir para a varanda, receber o ar fresco da manhã. Permanece lá até lhe passarem os calores e descobrir uma maneira de tirar aquilo tudo a limpo.
“Ah, mas eu hei’descobrir o que ‘tá-se aqui a passar! Ou não me chamo Noémia da Encarnação! Hei-de, hei-de! Quando a Magda armou aquela tramóia à coitadinha da Floribella por causa do Federico Fritessevalem, quem é que deu logo por ela, quem foi? A Noémia! Até mandei uma carta p’a Carnaxide à’visar a pobre coitada!”.
Empunhando o coto do lápis como se fosse uma arma, Noémia começa a anotar, no que sobra de papel, todos os itens de supermercado que lhe vêem à cabeça. Deixando-se levar pela volúpia do acto, atafulha o papel com os seus escritos infantis. Ainda suada do esforço que supôs aquela batalha pelo verbo, abre todas as portas de par em par e constata, entre incrédula e inebriada, que, não só estão lá todas as coisas que apontou, como se encontram nas quantidades certas!
Cai, com os joelhos que as mini meias deixam a descoberto, na tijoleira da cozinha, elevando os braços celulíticos em direcção à lâmpada fluorescente.
“Milagre!”
Lágrimas de contentamento saltam-lhe, em esguichos, dos olhos sapudos.
“As coisas que eu escrevo aparecem!”
Noémia, que não passou da quarta classe, nunca antes tinha suspeitado terem os riscos sobre o papel semelhante poder.
“Será que é só com a lista das compras?”
Com esta pergunta a forçar-lhe o ar em borbotões goelas adentro, decide testar os limites (ou a infinidade) do seu poder. Lembrando-se do santo António que o gato da vizinha do lado lhe tinha partido, quando uma vez que lhe entrou em casa, à socapa, pela janela da marquise, escreveu devotamente nas páginas centrais da TV Guia: imagem do Santo Antoninho com o Menino Jesus nos braços. Olhou, temorosa, para cima do frigorífico, no espaço entre o galo de Barcelos e a chaminé de Tavira. Lá estava o santo, com o seu hábito castanho, segurando um bebé de um tamanho desproporcionadamente grande. Noémia acreditou ter sido banhada pela graça divina!
Era preciso que usasse o seu dom em algo realmente importante, um gesto grandioso que os véus do olvido jamais cobrissem. Abre novamente a TV Guia, nas páginas com o resumo das novelas e, num estado de gloriosa ventura, reescreve o final da Floribella.

1 comentário:

Anónimo disse...

lol dos textos mais deliciosos que me arrancaram boas gargalhadas.
Keep On ^^

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