terça-feira, 10 de abril de 2007

Josefa

A Josefa, de rolos eternos na cabeça, bata às flores miudinhas, armações quadradas, de massa castanha, a suster umas lentes que lhe apequenam os olhos, chinelos orlados de um pêlo gasto, como de um rato tinhoso, mãos desbotadas pela lixívia e língua condimentada pela inveja, a Josefa, não se priva de espreitar-me por cima do ombro quando me sento ao computador, com ar de quem não diz, mas pensa “Lá está esta outra vez no ‘tequeleteque’! Deve achar que sabe escrever, a ‘dotôra’! Olhem-me p’ra isto! Pff!”.
E eu, encolho-me, para que os seus olhos mesquinhos possam atentar melhor no desastre que ocorre no monitor, que ela apenas pressente, pois não lê uma única letra, para que confirme o que já sabe, sobranceira, do alto dos seus chinelos puídos, para que o seu juízo dite o meu silêncio, de uma vez por todas.
Mas a Josefa disfarça, quando a encaro, rogando que desfira o golpe de misericórdia, que ponha a nu a minha torpe falta de talento, poupando ao mundo mais outro texto sem sabor. Ela disfarça e varre o chão com mais afinco, repara, subitamente, numa mancha que ali vê, mais por fé do que por acuidade de visão, raspa-a com a ponta da unha e sai.
Sai, deixando-me a sós com o monitor salpicado de bichos negros e incompreensíveis, que o analfabetismo da Josefa parece que se pega, e, sem me apoquentar com o que lá possa estar escrito, colo o dedo na tecla delete, desligo o computador e vou passajar as meias (sempre com fome de remendos) endireito os óculos, ajeito a bata, ponho um rolo que tinha descaído no sítio, escondo a alça do sutiã, teimosa e exibicionista, e deixo-me de ‘tequeleteques’.

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