quarta-feira, 12 de setembro de 2007

«Vegetable Dinner», de Peter Blume

Não, o olhar dela não queria saber dos dedos que descascavam batatas: tinha-se deslocado, irremediavelmente, de toda e qualquer parte do corpo dele. Não lhe interessavam os seus movimentos, as suas idas e vindas, as suas formas, as suas sensibilidades. De resto, o alheamento do olhar dela comungava do desinteresse do resto dos seus orgãos perante aquela massa que ocupava pedaços do seu espaço doméstico, ora na sala, em frente ao fogo moribundo, ora na cozinha, no lugar da mesa oposto ao seu, ora na casa de banho, tapando os azulejos desmaiados, ora na cama, onde se avolumava para além do limite do suportável.
O seu cigarro ocupava-lhe a boca, as mãos, o pensamento, esgotava-lhe os desejos. Sorvia o objecto do seu interesse, sentia-o descer pelo interior do seu corpo, habitando-o plena e pacificamente. Sim, concentrava a sua vontade e atenção no pequeno cilindro de papel e isso bastava-lhe.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Missing

Foi nos primeiros dias de Setembro. Marina levantou-se da cama, à hora do costume e foi até à cozinha preparar o pequeno-almoço. Ligou o rádio, mas o aparelho não emitiu qualquer som. Pensou se seria das pilhas, mas lembrou-se que o rádio funcionava por ligação à corrente. Perguntou-se se teria falhado a luz, mas bastou-lhe accionar o interruptor da cozinha para verificar que assim não era. Talvez o rádio fosse chinês, conjecturou, incapaz de se lembrar de onde o tinha comprado. Abriu então o frigorífico, mas estava vazio. O mesmo se passava com os móveis da cozinha, onde guardava os víveres.
Dirigiu-se ao quarto para se vestir, tinha de ir trabalhar. Tomaria qualquer coisa na rua e depois do trabalho iria às compras. Ao abrir o armário, contudo, o mesmo vazio que nos móveis da cozinha. Pegou nas roupas que tinha vestido no dia anterior e que estavam sobre a cadeira do quarto, vestiu-as, confusa, e saiu.
Já na rua, apercebeu-se de que tinha deixado a carteira em casa. Sem as chaves do carro, o qual, aliás, também não conseguia encontrar, nem dinheiro para transportes, não poderia ir trabalhar. Tocou à campainha do vizinho, para que lhe abrisse a porta do prédio e a ajudasse a abrir a porta de casa, mas aquele não atendeu, como, de resto, não atenderam todos os outros.
Sentou-se no degrau da entrada, sem saber o que fazer a seguir. Pouco depois, chegou o vizinho de passear o cão. Ela cumprimentou-o, obtendo em resposta o silêncio. Sem perceber o que se estava a passar, teve, ainda assim, suficiente presença de espírito para aproveitar a porta aberta e entrar no prédio.
Subiu as escadas, atrás do vizinho. Ao chegar ao andar em que ambos moravam, o seu espanto não podia ser maior: a porta do seu apartamento desaparecera. Mais! O seu apartamento desaparecera. Disse qualquer coisa ao vizinho que, parado em frente ao apartamento dela, olhava, atónito, o vazio. Mais uma vez, ele não deu sequer mostras de a ter ouvido. Apercebeu-se então de que o cão dele estava exactamente no mesmo sítio que ela. Aliás, dizer “no mesmo sítio”, nem sequer era correcto – o animal estava NO sítio dela, tal como o vizinho, ao virar costas para voltar a descer as escadas. Atravessaram-na, ambos, sem que ninguém sentisse nada.
Foi nos primeiros dias de Setembro que leu no jornal local acerca do misterioso desaparecimento de um apartamento e da sua ocupante. Lembrava-se, porque tinha sido uns dias antes que Nuno partira.