sábado, 22 de novembro de 2008

Maria José

As meias pretas de ligas eram a sua última esperança. Faziam-na sentir irresistível e isso reflectia-se no vestido vermelho justo. no carmin intenso dos lábios, nas pestanas lânguidas e nos sapatos de tacão alto. Vestiu o longo sobretudo de imitação de pele, pegou na bolsa e saiu.
Maria José Morais chamou um táxi e deu ao condutor a morada do Paraíso, onde ia todas as sextas á noite. O táxi parou em frente ao Clube e Maria José saiu sem pressa, primeiro um perna negra, depois outra, equilibrando-se nos tacões.
Entrou radiante no Paraíso e percorreu avidamente a sala com o seu olhar treinado. Um homem enigmático bebia encostado ao balcão, distraidamente pendente dela. Maria José copiou-lhe o ar distraído e a bebida, e o convite do homem não tardou. Num tom doce mas que não admitia recusas, instou-a a segui-lo a um apartamento em obras, no último andar de um prédio de doze.
À luz do luar que entrava pelas janelas sem vidros do apartamento, o homem adquiriu um semblante escuro. O homem foi-se aproximando dela, até a encurralar contra a parede. A pedido dele, Maria José ajoelhou-se e uma vertigem escureceu o local.
No dia seguinte os trabalhadores da obra viram um corpo nu no chão do apartamento do 12º, onde se podia ver o sexo que revelava o verdadeiro nome da bela mulher: José Maria.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Para ti? Uma mesa de madeira tosca com memórias no tampo de todas as acções, o cortar do pão, o picar da carne. Na lareira, um tacho de vegetais grosseiramente cortados, numa sopa espessa. Seguramente, nacos de carne.
À noite, as chamas eloquentes do fogo e o vértice de um cigarro, para onde convergiriam todos os pensamentos. Na cama, lencóis sem rodeios e abafos quentes. Uma janela virada para a humidade nas folhas de couve e os odores matinais da azáfama da capoeira.
Um frio acérrimo, botas sem pudor das bostas, um bagaço ao balcão do café, entre os homens.
O rosto marcado por auroras de labuta e um lar de rude franqueza. Mas, por entre as hortênsias, uma rosa.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Vinha

Vinha todos os dias por este caminho, com dedos como bagas, beijo à mãe, beijo ao pai, e seguia para a escola a aprender as coisas do mundo.
Custavam a entrar essas coisas escolares, de tanto verde que crescia das raízes do cabelo para dentro.
Até que um dia em que trovejava (porque as nuvens carregadas de água chocavam faiscantemente) um relâmpago (mais rápido que o som) cortou um tronco ao meio (ficaram ramos, folhas glabras em fotossíntese) e a botânica se lhe entranhou no crânio por obra da física.


(Texto nascido num vinhedo do Flickr)

Fado

A confraria dos cães ladra na noite, as vozes chegando onde as patas não alcançam. Carpem latindo o metro e meio de ferro que os acorrenta a um só lugar.
Maria da Fé, um embrulho de xaile negro, parte para a sua via sacra nocturna. Com os chinelos pela calçada, passa entre as casas de talha pequena em direcção à praia. Lá chegada, já não chora. Bebeu-lhe a areia a água com que lavava os olhos expectantes, como o mar lhe tragou o corpo esperado.
Enquanto Maria das Dores cumpre as estações, o seu leito arrefece. Jaime já está à janela tangendo a guitarra com os dedos que a Prazeres não quis. Desde que ela se foi, religiosamente agarrada ao último padre que por ali passou, a cama de Jaime não recebe visitas - prefere ser ele a despedir-se todas as noites nas casas das viúvas.
Quando regressa a casa, Maria da Saudade reacende a vela à foto do homem que, com o anel de ouro que ainda traz no dedo, ganhou o direito de dormir com ela às vezes.
Nada muda. Os cães calam-se.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Cansado das deambulações noctívagas, dos encontros fortuítos nas ruas escuras, para apreciar rabos com gosto conhecedor, regresso a casa, saciado e envergonhado por esta minha necessidade diária.
Entro sem fazer barulho, subo até ao quarto, mas estranho imediatamente a quietude excessiva, a ausência de respiração vinda da cama. Encontro a tua roupa desalinhada sobrea cadeira, os teus sapatos, mas faltas tu e o teu pijama, os chinelos e o roupão de trás da porta da casa de banho.
Chamo-te, timidamente, primeiro, com convicção e a plenos pulmões depois, por toda a casa, apaenas para confirmar o que pressenti ao entrar no quarto - que não estavas.
É então que a vergonha dá lugar a um sentimento de culpa insuportável. Se não tivesse saído, se não fosse esta minha necessidade inelutável de sair todas as noites quando vais deitar-te, se não fosse a tua compreensão, talvez ainda estivesses aqui.
Percorro novamente a casa em busca de indícios que me digam onde poderás ter ido, mas a casa persiste no silêncio. Esgotado, volto para o quarto, puxo pela camisola que deixáste na cadeira e levo-a para a cama. Enrosco-me nela, sentindo o teu cheiro nos punhos e na gola, o teu odor inconfundível.
Do meu canto da cama, recordo ou sonho, já não sei, os nossos passeios no Gerês, os banhos no mar revolto, as refeições partilhadas, as noites invernosas aquecidas pelo lume da lareira, as idas ao café, onde me exibias, orgulhoso, perante os vizinhos.
Acordo com passos bruscos no corredor. Homens fardados irrompem no quarto e agarram-me sem cerimónia. Insensíveis aos meus protestos, arrastam-me escadas abaixo e metem-me numa carrinha. Não consigo perceber por que razão me levam. E se regressas? E se precisas de ajuda? Como poderei socorrer-te estando preso?
Quase rouco de tanto pedir que me soltem, deixo-me escorregar para um canto da carrinha. Oiço os homens a conversarem. Comentam que te levaram ontem à noite metido numa camisa de forças. uma denúncia dos vizinhos, por causa da tua estranha relação comigo, desse entendimento contra-natura entre um dono e o seu cão.