domingo, 25 de maio de 2008

Quando ainda era uma vez

De início lia o que ele escrevia e, mais adiante, passou a acompanhar o trabalho plástico dele. Era bom. Vinha das entranhas. Nos desenhos e na escrita, o mesmo caudaloso talento, de cortar a respiração.
Juntando tudo o que conhecia dele, ficava com muito pouco. Mas esse pouco foi o suficiente para já não conseguir desligar-se dele, para nem sequer desejar fazê-lo. Pressentia nele uma sensibilidade especial, única. Ninguém dizia as coisas como as dizia ele, ninguém traduzia plasticamente a realidade - ou o sonho - do modo como o fazia ele. Por trás da palavra e do traço, adivinhava-lhe uma humanidade, às vezes pungente, às vezes hilare, mordaz, lúcida, interveniente.
Do consumo da obra, passou a desejar a prova do autor. Sentia que lhe faltava um braço se não tinha o braço dele, que lhe faltava um olho, se os olhos dele não a acompanhavam, que se lhe secava a língua, sem o contacto da língua dele. Sentia-se truncada. Desejava a corporeidade dele, a presença, a proximidade.
Mas havia o medo. Receava ter um corpo oco para oferecer-lhe, não ter a imagem adequada, levar uma existência repleta de tédio, de fatuidade. E prendê-lo num quotidiano corrosivo, desbotado. Debatia-se, a toda a hora, entre a vontade e o bom senso, num vaivém de posturas, numa indecisão que a desgastava. Consumia-a o não conhecer o fundo dos anseios dele, o não poder medir-se à luz dos seus desejos.
Passou a submeter-se a um exercício de contenção, obstruindo a passagem aos seus impulsos que sempre eram em excesso. Para refrear-se, socorria-se do passado, solícito em tolher aspirações, que nunca a decepcionava quando se tratava de dissuadi-la de algum voo mais ousado. Apequenava-se, encolhia-se o mais que podia, para não sobrar dimensão alguma que a desilusão alheia pudesse podar.
Quando ela já não tinha mais tamanho de que desfazer-se, conheceram-se os dois e desabrocharam à luz do sol da boca um do outro. Mas eis que, pegajosa de saliva, soou a palavra impossível, a que ateia fins a todos os começos, e a realidade, avessa a somas e produtos, nos deixou números fraccionários. E assim, matematicamente, terminámos.